Ask Google Guru:

sexta-feira, 23 de maio de 2014

NÃO TE ACOVARDES AO CAIR DA NOITE






DO NOT GO GENTLE INTO THAT GOOD NIGHT

NÃO TE ACOVARDES AO CAIR DA NOITE


Do not go gentle into that good night,

Old age should burn and rave at close of day;

Rage, rage against the dying of the light.


Não te acovardes ao cair da noite.

Que tu saibas envelhecer como o sol ao findar o dia:

Bravo, belo, forte, vivo, mesmo em face a própria morte.


Though wise men at their end know dark is right,

Because their words had forked no lightning they

Do not go gentle into that good night.


Sábios fizeram poemas lindos sobre este último açoite.

Suas palavras brilhantes são palavras apenas, mas ainda brilhantes:

Bravas, belas, fortes, vivas, mesmo em face a própria morte.


Good men, the last wave by, crying how bright

Their frail deeds might have danced in a green bay,

Rage, rage against the dying of the light.


Homens bons, cujo aceno de despedida foi breve, mas fulgurante,

Seja em verdes pastos ou escuros desertos, mantiveram a alma límpida

E o espírito indomável, bravo, belo, forte, vivo, mesmo em face a própria morte.


Wild men who caught and sang the sun in flight,

And learn, too late, they grieved it on its way,

Do not go gentle into that good night.


E vós corajosos, selvagens, guerreiros, heróis, mesmo os imprudentes

Cuja mão rija se adianta ao pensamento, que seu derradeiro lamento

Seja bravo, belo, forte, vivo, mesmo em face a própria morte.


Grave men, near death, who see with blinding sight

Blind eyes could blaze like meteors and be gay,

Rage, rage against the dying of the light.


Que vós moribundos, cujos olhos se enevoam perante a grave senhora,

Encontrem a consolação no espetáculo cósmico desta última hora

E sigam em frente, bravos, belos, fortes, vivos, mesmo em face 

a própria morte.


And you, my father, there on that sad height,

Curse, bless, me now with your fierce tears, I pray.

Do not go gentle into that good night.

Rage, rage against the dying of the light. 


E tu meu pai, que para o mundo definha enquanto para mim se agiganta,

Ouve este poema, esta maldita bênção que nasce miúda, mas logo se levanta

Chamando-te para comigo, de mãos dadas, enfrentar o terror e a maravilha desta noite:

Sigamos em frente, bravos, belos, fortes, vivos, mesmo em face a própria morte.



[Poema original de Dylan Thomas, versão de Marcelo Sousa.]



A GREVE GERAL





Naquela madrugada, Florêncio não foi trabalhar. Era outono, uma ventania mordia o cocoruto das campinas onde as rosas e os lírios, mastigados, choravam lindamente, orvalhados por aquela lua gigante que teimava em não ir embora. O homem na janela observou e chorou, sozinho. Não tinha mulher nem filhos, nem cão, nem gato, nem ratos havia em sua casa, ninguém sorria ou chorava por sua causa. Era florista, filho de florista, neto de não se sabe quem, porque os floristas jamais foram bons em cultivar árvores genealógicas. Florêncio, filho de Florisvaldo, era um trocadilho vivo e infame, um clichê feliz em sua limitada e florida vida. E naquele dia, não foi trabalhar. Mariano, pequeno fazendeiro, passou com a caminhonete na frente da casa de Florêncio. Iriam juntos para o Mercado Municipal, um vender flores, o outro, pão, leite e café. Mas o florista estava ainda em camisola, as mangas brancas esfarrapadas manchadas de amarelo, o tempo traçando bordados que a gente só percebe na morte, ou num dia desses de sorte, em que se decide olhar a vida e não fazer nada. 

Mariano chamou, chamou, e nada. Então desceu do velho chevrolet azul e foi ver o que acontecia. Pisou o caminho de pedrinhas lisas, ladeadas por mais flores, de tantas cores que pareciam potes de tinta derramados sobre a relva. Andou pouco até a casa, onde surpreendeu Florêncio bocejando na janela, o aspecto sonolento e contente, a caneca de folha de alumínio ainda vazia: no caminho da cozinha o florista havia parado pra olhar a campina e ali ficou.

- Ô de casa, Sêu Flor!
- Mariano, homem, venha chegando...
- Mas já cheguei.
- Então entre, vem olhar pela janela comigo.
- Mas entrar pra olhar pra fora, Sêu Flor?
- Pois sim, então fique. Tomou café?
- No mercado a gente toma, estamos atrasados, homem!
- Não vou.
- Hein?
- Não vou. Estou em greve.
- Greve?
- Pois é. Tenho o direito.
- Mas que idéia é essa? Vendedor de flor não tem greve!
- Tem sim! E eu sou florista. Planto, cuido, faço os ramalhetes, e vendo.
- Florista não faz greve.
- Por quê não?
- Porque não.
- Vou reclamar no sindicato.
- Não tem sindicato.
- Mas, e os meus direitos, o meu salário, as minhas férias?
- Tens o direito de passar a flor a quem gostar de flor.
- Isso, e o quê mais?
- E vais receber o quanto quiser cobrar, se tiver alguém pra pagar.
- É, e tem os pechincheiros engravatados dos escritórios, e as moças bonitas, e os jovens namorados, e as velhinhas...
- O quê tem?
- Cada um paga um preço, uns não pagam nada, outros pagam quando dá.
- Mas aí é um problema seu, meu amigo.
- E tem as estações em que as flores estão arredias, não crescem direito, exigem mais água, até música, querem que eu toque serenata a noite inteira, e acordam bonitas, mas eu fico um farrapo.
- É a vida. Eu com as vaquinhas sou meio assim também. E tem dia que não querem me dar uma gotinha de leite.
- Então façamos greve!
- Contra quem, o quê?
- Tem que ser do contra?
- Não tem?
- Não sei. Acho que não.
- Vamos tomar um cafézinho?
- Só se for com leite.
- Dia bonito, não é?
- Belíssimo!
- Vamos pra janela.

E sentaram os dois perto da janela, á beira de campos floridos de todas as cores. Agora tinham café com leite, pão quentinho, e flores por todos os lados. Estava declarada a greve dos floristas e dos fazendeiros daquela cidadezinha. Os moradores logo perceberam algo de errado. Não tinha pão e leite na padaria. O cafézinho do bar era velho, da véspera. As casas dos ricos e dos pobres tinham flores murchando, que não foram substituídas. No terceiro dia o delegado foi à fazenda, preocupado, buscar Sêu Mariano, que não estava lá. No quinto dia os três policiais da cidade, mais um bombeiro e o delegado, procuravam o fazendeiro. No sexto dia uma moça notificou a falta do florista. Seu namorado chegara pra pedir a sua mão, conforme ensaiaram, ele de terno branco (o mesmo que seu pai usou duas décadas antes) ajoelhando perante o sogro, bigode grosso e preto, pintado dois dias antes, já sabendo da surpresa... Mas sem flor! Sem flor! Um disparate, uma falta de consideração! Ou seja, não teve noivado. Não teve beijinhos e mãe chorosa. E quase teve briga com cunhados de calças curtas e pavio menor ainda. Deu polícia! E por isso lembraram do florista.

- Ô de casa! Sêu Flor!?
- Carneiro, homem, venha chegando!
- Bom dia! Está doente?
- Não.
- Tem faltado à banca...
- Estou em greve. Não vai ter flor.
- Greve?

Mariano chega à janela e faz côro:

- Greve, Sêu Delegado! Estamos em greve!
- Homem de Deus, estás vivo!?
- Estou aqui com meu amigo...
- E estão os dois em greve?
- Isso.
- Mas que disparate. Vocês não podem...
- Podemos! 
- Mas contra quem?
- E tem que ser contra alguém?
- Não, mas, vocês vão reclamar do quê? Com quem?
- E se a gente não reclamar?
- Mas não é greve?
- É.
- Não estou entendendo.
- Entre, Sêu Carneiro, digo, Sêu Delegado. Tome um café...

E foi assim que o delegado, depois os três praças e o bombeiro, foram entrando, cada um ganhando uma caneca de folha de alumínio cheia de café com leite, e uma rosa (cada uma de uma cor) na lapela. E sentaram pra conversar, mas a verdade é que não falavam nada, apenas ficaram ali sorrindo, aproveitando o café e as flores.

A cidade estava estranha. As pessoas notavam um ar de desconfiança, uns ventos soturnos de descrença. Os turistas deixaram de ir pra lá, achando aquela cidade sinistra demais. Algo estranho estava acontecendo, e ninguém sabia o que era. Aos poucos, as pessoas iam desaparecendo: no sétimo dia o padre sumiu, junto com a moça que vende chocolates, o fazedor de pipas, o tocador de sanfona e o chinês da pastelaria. Aos dez dias já tinham sumido os mendigos, os vendedores de milho pra pombo, a velhinha do quebra-queixo, o garoto que engraxa sapatos na esquina da prefeitura, o lanterninha do cinema...

No décimo dia o prefeito decretou estado de calamidade pública. As pessoas andavam tristes, a cidade não produzia, o noticiário culpava as autoridades. A notícia da cidade que definhava ganhou as manchetes estaduais, depois as nacionais. O prefeito percorria a cidade e o campo, mas não encontrava motivo. Até que um dia, passando nas campinas floridas do Sêu Florisvaldo, viu pessoas sentadas no quintal, umas na varanda, tantas e tantas entrando e saindo da casa, uma cara boba, sonolenta, parecia um semi-sorriso sarcástico, meio lunático, uma cara de santo de igreja, mas sem martírio.

- Ô de casa! Sêu Flor!?
- Ô seu Praxedes, venha chegando!
- Mas já cheguei!
- Então entre e tome um café!
- Venho como prefeito da cidade.
- Pois tome aqui a sua caneca, seu prefeito.
- Mas o quê está acontecendo por aqui?
- Estamos em greve.
- Greve? Sêu Flor! 

Daí chega o padre com a caneca quentinha nas duas mãos, como se entregasse a hóstia ao prefeito. Aquela fumacinha gostosa perto do rosto do Praxedes era irresistível, e quando a garota dos chocolates chegou com aquela rosa vermelha, o coração do prefeito virou manteiga...

- Aliás, alguém tem um pãozinho aí?
- Sêu Praxedes, tó!
- Obrigado, Sêu Mariano.

O florista, que já nem conseguia entrar na própria casa, passou os dias no alto da campina. A vida passava devagar sobre aqueles montes floridos. A cidade, cada vez mais vazia, preocupava a nação. Três meses depois, um destacamento do exército passou por lá, e como era de se esperar, os milicos chegaram com suas patentes. Tenentes jovens com botas lustradas pediam explicações. Confusos, chegaram os mais graduados, com tanques e fuzis. 

Um general sentou pra conversar com o Florisvaldo. 
Nunca mais voltou.

Nesse ponto, até mesmo quem contava a história desapareceu na multidão, a caneca de folha na mão, uma flor roxa na lapela. Mas dizem que trezentos dias depois do início da greve do Sêu Flor, o presidente do país chegou naquelas campinas com uma tropa de ajuda internacional, líderes do mundo, cientistas e políticos seguiram pra lá também.

- Ô de casa! Sêu Flor?
- Ô de fora, venha chegando...