Ask Google Guru:

segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

ANTES DO SONO




Não sou eu
mas meus olhos,
ventanelas semicerradas
segurando a hora última,
íntima, ínfima, antes
do sono.

Uma torre de marfim
queima esplendidamente
no horizonte crepuscular.

Os ratos cantam,
contam segredos,
fazem dos gatos seus
brinquedos, tocam jazz,
declamam poemas, oram, 
pedem a Deus que salve
suas almas pequenas,
e riem do seu próprio
destino.

Estou feliz
e finito.

Cada minuto
de calma, na fotografia,
parece uma festa de cegos
lambendo celulóides
de cromo.

Estou feliz
e finito.

Não sou eu
mas meus olhos,
ventanelas semicerradas
segurando a hora última,
íntima, ínfima, antes
do sono.

domingo, 28 de fevereiro de 2016

BEIRA-MAR



Venho à beira de ti,
meu mar, testar meu canto,
resfolegar com que em prantos,
tentando, na verdade, tornar
imperceptível, impenetrável
a minha respiração, como
se morto eu pudesse
ainda, ao sabor
das marés
dançar.

Vim, meu mar,
dizer que cantar o azul
é voltar, e voltar, e voltar
sem sair do lugar: saber
que a gente acaba, e esquece
que as ondas vem, e voltam, e
vem, as ondas, as ondas, a gente
se vai, de repente morre, mas não
desaparece.

Venho à beira deste mar
deixar meu corpo fluir, pesar
sobre as águas, como se mágoa
alguma pudesse nos vencer, machucar,
porque é enorme, imensa a alma de quem
com calma souber viver, morrer, viver,
morrer, e com pés de sereia 
flutuar.

Basta saber
que tudo (e nada)
é definitivamente vigente:
a gente vive, sobrevive, cala
e canta, pranteia um ponteio
bonito, como o volteio do pescador
a pentear a rede que se irá lançar
- ter esperança, saber esperar
por outra vida, talvez melhor,
talvez diferente, um outro
canto, no mesmo mar.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

ESPUMAS FLUTUANTES


Verdades 
líquidas escorrem 
das falas enquanto 
não é noite
nem dia.

Esperanças fugidias
fazem ninho em moitas
de silêncio e mágoa.

Estamos em estado de festa,
ou de luto, o que é, no fim
das contas, a mesma
coisa.

Estamos bem
como o cristal
à sombra do 
martelo.

Descubro cobras
e lagartos, de vidro
colorido, enterrados 
no peito d'uma palmeira
solitária.

Venta:
o mar arrebenta
contra meus rochedos
particulares, minhas verdades,
medos, minhas apostas, 
meus lances de fé
e sinismo.

Amar, fato
registrado em ata,
firmado em contratos
e lavrado nos autos
resvala, escapa
quando se tenta
retê-lo.

Amor,
monstro maldito
e belo!

Quanto custa
voltar atrás para
encontrar a mesma
história, renovada
em erros luminosos
e promessas frágeis
e lindas como as algas
que se desfazem todas
as manhãs, ao chegar 
à praia?

Há verdades firmes 
como a espuma branca
das marés.

Creio nelas 
e no poder de mil fadas 
afogadas, mortas, decompostas,
dentro de uma garrafa de vodka,
vinho, ou coisa que o valha.

Esses diabinhos
guardados nos odres
nunca falham.

O amor
rescinde à fruta
podre.

Fui romântico
em vão, como são
e serão todos os poetas
fracassados, mas aplaudidos
por hordas de paquidermes
que nunca dormem.

Enorme, 
o caminho de volta
some na poeira
do oceano.

A pé, à nado,
com remos ou braçadas
fortes, decididas, não importa,
já não posso voltar.

Inteira,
minha sombra
é maior que meu 
corpo.

Morto, 
valho menos,
mas sirvo ainda.

Servir e amar
é quase o mesmo
para muita gente.

É preciso
contar moedas
e garantir as incertas
vias do viver.

Cada vez mais raras
essas horas de paz e bem
precisam ser compradas
a peso de ouro e carvão
animal.

Assino promissórias.
Penhoro relicários
de prata suja.

O amor falha
mas não tarda.

Mesmo
em vão, não 
podemos desacreditar 
do seu poder.

Calar, amar,
seguir em frente,
rente à costa, cortando
a pele, a carne, nos corais, nos recifes, 
nos hábitos pontiagudos, nos costumes 
afiados, nas horas pesadas 
de descanso, no armistício 
do sono, na paz da 
ausência.

Só assim 
é possível, obrigatório, 
imperioso viver, sobreviver 
aos falsos confortos da noite 
e aos verdadeiros (porém tão
caros) prazeres
do dia.

Para todo o resto
há Deus, o dinheiro
e a poesia.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

RECORTE

Cada minuto dourado
dura apenas o necessário,
então preteja, latejando sob
nossa pele. Devoro a hora boa
com esses olhos de mirar à toa.
Viver é prestar atenção, muita
atenção, a tudo o que for
colocado ao lado
de cada detalhe.

O entalhe
do morro onde 
as nuvens se escondem.
O coqueiro torto que à direita
prepara suas ogivas esverdeadas
e suculentas. As lâminas que pendem
dos caules; prata, alumínio, chumbo
no céu da tarde, pardais, e mais,
todos iguais, pedindo haikais
aos monges, longe, onde
léguas imaginadas
nos separam.

Um gesto
que lança os dados
errados, uma curva que nos perde,
o pingo de malvasia, o vidro moído
entre os dentes, a resposta dada,
a chuvinha que arde, a espuma
de um cansaço que escorre
dos poros, o verso de ouro
que a gente pensa, pensa,
corre, procura o papel,
acha caneta, mas
perde a letra.

Não dei sorte, venci.
Houvesse perdido, sido
mais um, seria mais feliz?

Escapo.
Por um triz não fui.

O musgo cresce feliz
entre os hábitos da gente.

A hera, viçosa, 
faz parecer alegria 
o que era apenas 
descuido.

Tudo é bom, 
e é preciso esquecer-se disso
a cada dia, e recomeçar, escorregar,
cair, levantar, sorrir, fingir, 
e chorar como quem 
aplaude.

Todo santo dia
uma flecha envenenada 
me acerta o peito, e eu
sorrio, ensaio um salamaleque,
e malandro, moleque, sigo em frente
dizendo que não doeu.

Repare, é tudo verdade, 
mas nem tudo aconteceu.

domingo, 7 de fevereiro de 2016

ALEGORIAS E ADEREÇOS

Estive e fui.
Sobretudo tive.

Hoje, flutuo 
com pesos 
nos artelhos.

Do alto, 
pareço estar 
ainda de joelhos.

Divago
com pressa.
Cobram-me abraços
e sorrisos espremidos:
entrementes, entredentes,
é estridente o som deste
silêncio.

Estive. Fui.
Tive. Mas dói
saber que foi tardio
compreender que toda dor
vinha do peso, da posse, dos ossos
cansados, loucos pra ser penas,
talvez plumas, e voar. 
Apenas.

Mas 
preciso demais
de um pouco mais de tempo
e umas poucas coisas que muito
custam chegar, porque aqui do alto
fica difícil alcançá-las: quem
me entender, não diga.

Estive. Fui.
Tive. Agora toco
ágoras douradas 
com as pontas dos meus pés.
"Viver é foda. Morrer é difícil."
Há de se ter paciência
e alguma pressa.

Pisar a lama
tendo nuvens na cabeça.
sapatear, meu bem, sapatear
miudinho, como a palmeira
que penteia os cabelos
na tempestade.

A gente vive mesmo
é quando não quer
nem precisa.

Deve
ser por isso
que a vida é preciosa.

Minhas filosofias
derreteram-se no último verão.
Os blocos passam, passarão.
Até as moças, oh, as moças,
por baixo da purpurina
e do cetim, também
são carne e osso.

Tudo é possível.
Mas nem tudo se pode,
disse aquele que me fortalece.
Minhas preces sobem e descem,
descem e sobem, na partitura.

Hoje fluo, quase voo.
As correntes balançam no ar.
E o som que elas fazem, ao tilintar
inúteis e pesadas, é lindo!