Ask Google Guru:

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

PRIMEIRO ENVELHECER




Primeiro envelhecer.
Encardir as sobrancelhas.
Usar calças de tergal.
Vestir camisas brancas,
Devidamente enegrecidas
Na gola e nos punhos.
Um remendo de esparadrapo
Nos óculos de aro fino.
Moedas miúdas no bolso.
A voz baixa, as mãos incertas.
Explosões de um ódio cômico.
Rompantes de uma tristeza engraçada.
O perfume estragado na pele morta.
O tempo encalacrado 
Na borda amarelada
De cada dia.
As facas cegas.
Os garfos tortos.
Panelas furadas.
Gaveteiros de meias sem par
E sonhos nunca realizados.
Os seios que brotam
Sob as malditas camisetas brancas
Das raposinhas que me assaltam a paz.
O mingau frio.
Os cabelos ralos.
O sexo vil.
O cerebelo ereto.
O gozo triste e incerto
Da minha glândula pineal.
A aurora boreal constante
Fotografada no mata-borrão
Das minhas retinas.
A resolução do olhar perdido.
O passo claudicante,
Como num tango dolorido.
Viver, sem ênfase.
Morrer, sempre aos poucos.
Ter epifanias diárias, inúteis.
Envelhecer, sem teoria.
Ensaiar falências múltiplas.
O 'delirium tremens' da alma.
O verso precário
A poesia bárbara
Do meu silêncio.
Arrefecer.
Envelhecer.
Feito isso, o cenário
Estará quase definido.
Compra-se um gato. 
Talvez um canário
Um cão pequinês
Um peixe dourado
Um lagarto emplumado
Uma serpente alada, talvez.
Uns cochilos no calçadão.
A cara fechada, de poucos amigos.
Uns tomates derrubados
Na feira de domingo.
E está feito!
Após uma vida de excessos,
Malcriações e vilanias,
Serei um senhor de idade
E todos acharão genial
Todo o mal que fiz.

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

A HORA MÁGICA






A orla desenrola sua linha bonita, nunca aflita. Sua vazante desce pelo canto do meu olho como lágrima de uma estranha alegria, melancolia recebida com festa. Pelos cantos, pelas arestas do que se vê, estamos condensados, firmados na efeméride daquele momento. Na fotografia, a luz é moldada no pós-clique: reverte-se, subverte-se o real com as tintas menos precárias do nosso imaginário. Assim a linha marginal do mar imenso estende-se para além do que se vê, deitando seu espectro entre o que se sente e o que se quer sentir, ou por um triz ficou para trás do real, porém adiante do possível, por assim dizer tangível no espaço definido pelo tato da alma, não do corpo. A pátina arenosa deste universo particular nunca é abrupta, corrupta ou revoluta. A fímbria tranquila recolhe em seu berço as marés revoltas, as voltas que damos no vai-e-vem das estações, as monções de infortúnio e boa sorte, tão comuns ao viver, e o concreto armado dos prédios novos sobre os casebres que resistem à maresia e aos ataques do dia a dia. Hoje tirei gravata e sapatos, e chafurdei na luz e na areia da praia dos meus sonhos, na praia da minha vida real, no bairro onde moro, onde moram vontades de ontem, onde vivem os fantasmas de hoje, onde jazem os perigos de amanhã. Hoje tirei gravata e sapato, e deixei o sol poente pegar-me de calças curtas. E no meio do calmo turbilhão do mar imenso, penso que fiz de minha vida (essa fração infinitamente mínima e tão precariamente bela) uma ode ao momento presente, uma canção de amor ao átimo íntimo perdido na infinita procura do que não será, não foi, não pode ser, não existia. Eis que eternizo, ao menos para mim, o sal empregnado nessa hora tão fugaz do dia. Mar, oceano, lágrima, tudo cabe no mesmo momento, na mesma palavra: poesia. 

sábado, 17 de agosto de 2013

CAPOEIRAS






Sabia do pó, da garganta seca, do turbilhão.
Conhecia o samba que as mãos fazem no vácuo do momento certo.

Imaginava paranauês: pernadas, ombradas, sopapos, nas capoeiras armadas pelo coração.
Temia as campinas, mas em frente seguiu; seguia. Poesia era semente plantada em peito aberto.

Sabia do pó. Da garganta seca brotava o brado.
Tudo em pé-de-guerra, tudo tranquilo para o que tem que estar desperto, esperto.

Conhecia o aboio tranquilo para guiar seus sonhos: verso-grunhido, jeito triste de tocar feliz o seu gado.
Capoeira se faz com corpos que descansam na revolta.

Vento vil, vento veloz, vento que acaricia o longe e maltrata o perto.
Paz de pássaro que descansa em pleno voo, na esteira esgarçada desse tempo que não volta.

A caravana passa, sem que os menestréis tenham tempo de cantar o Bem, as Boas Novas.
Sem pão nem piedade, todo homem sabe ser cão e gato, feto e fato, vilão e mártir. 

Partir. Partir. Tudo se resume a um lento, pesaroso, porém delicioso, partir.
Por isso sigo, despedido de tudo à minha volta. Eis a prova: o mel deixado como rastro percebido no amargor dessa trova.