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domingo, 24 de agosto de 2014

O BICHO




O m(eu) animal 
não ruge.

Urge nele apenas
- por baixo de pele,
pêlo, pena e escamas -
uma imensa vontade
de não esconder 
virtude ou vício. 

O m(eu) animal
ereto na penumbra
dos seus próprios desejos
despeja o seu magma em vão.

Expirado o prazo do seu gozo
na expiação de todo pecado não cometido
o animal desdenha espelhos que não sejam
opacos, ou cacos de outros espelhos
onde sua alma feérica se partiu.

O membro potente como um arcabuz
reluz em suas mãos trêmulas que apontam
musas silentes, musas potentes, musas
que ousam ser apenas simples poemas
forma terrena de toda coisa-menina
declarar sua natureza oculta
e divina.

E há sobretudo o silêncio
de uma rima 
errônea.

E há sobretudo o acaso
e a repetição de arquétipos
nada poéticos.

O m(eu) animal 
não ruge.

Urge nele apenas
- por baixo de pele,
pêlo, pena e escamas -
uma imensa vontade
de não esconder 
virtude ou vício. 

Por baixo
de tudo isso
somos todos
bichos.

terça-feira, 19 de agosto de 2014

SALAMANDRA







A pele morna 
das bonecas de plástico moreno
e o bocejo frio dos mortos que observam
de dentro do marulho dos tambores oceânicos
entre os poros de um tempo cuja derme se descama
em fatias de vaga lembrança, em descoradas escamas
que se esfacelam ao primeiro vibrato da canção da alvorada.

A pele morna 
das princesas de ancas grandes
e seios pequenos, negritas vorazes
cujo tépido rumor de mil gárrulas nas praças
ainda posso ouvir dentro da concha de cada domingo
oxigenado pelo riso e pela mágoa dos santos de barro
sobre o ouro traficado pelas mãos macias dos profetas
encantados pelo sopro da monção desse outono dourado.

A pele morena
dos negros que habitam os palácios
e penetram carnes brancas, pretas, vermelhas
ao som do velho tambor de senzalas inventadas
e terreiros onde poetas vertem champagne e cachaça
e comem o fubá dos ímpios, a farinha dos infiéis, o cará,
o inhame, a batata, os liames da cozinha das vaidades alheias
cantadas em prosa poética nas catedrais que ardem em chamas
e em labaredas azuis cintilam constelações de almas despudoradas.

A pele morena
dos taróis cuja voz tropical de guerra e paz
posso ouvir ainda, no eco rebatido nos umbrais
dos casarões dos bairros onde o sol demora a chegar
e onde a lua não vê o mar imenso a cantar serenatas vulgares
mas apesar dos pesares há o amor, e o poema de mil estrofes
multiplica os caminhos por onde meus dedos podem passear 
e sem pressa deflorar todas as folhas brancas e vulvas róseas
que se perfilam diante de meus olhos cansados porém sequiosos
da velha novidade que é o amor, o amor, o insidioso milagre do amor.

domingo, 17 de agosto de 2014

AJNA





Lavo meus pés de açúcar
no orvalho frio que a alvorada chora.
Sorrio, pois agora desfaz-se em pó
o caminho traçado pelo teu olhar.

Obedeço o pio de pássaros ignorados

e guardo entre as sobrancelhas cansadas
uma pergunta que não precisa ser respondida
pois flutua silente à margem do ribeirão da vida.

O bojo de um sol ainda menino

cavalga campinas que meditam em paz
na foz de um tempo que não tem dono
onde a lua-moça esconde meu sono.

Enterro as mãos pretas na seiva de um nenúfar

que desabrocha cedo na testa franzida da manhã.
O canto breve da esperança inaugura o dia de par em par.

Geleiras frigem cacos de luz: 

os primeiros azuis beijam
as pálpebras pesadas do mar.

Que o primeiro poema deste dia seja

um canto feliz para dizer adeus 
aos que ainda estão para chegar.

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

VIBRATO




Madrugada adentro
leio vorazmente a minha sina
em palavras alheias.

Faço poemas
como quem corta com faca
e expõe da palavra o tutano.

Mas do nervo posto
mantenho intacto o seu vibrato.
Toda punção de vida e morte
procura na esperança o seu contrato.

Palco iluminado.
Panos coloridos, dourados,
sob a rima dolorida, adorada.

Lavro termos incongruentes.
Dísticos rolam sem a beleza dos cordéis.
Tudo o que tenho são cacos de vidro
sob as unhas.

Um baixio de bestas no peito.
Toda melodia expira antes do fim.
Ouça, a canção estaca
no oco da gente.

Inspiro, escrevo.
Um arfar que na noite longa
ainda canta.

Respiro.
Há pausas inconfessadas
nas entrelinhas.

Minha espada
escava sulcos no verbo.

O metal passeia
por baixo da pele inerte:
artes de um fauno sem floresta.

Que ninguém me entenda.
Vendo barato este ouro
que não é meu.

Maremotos perpétuos
aprisionados numa concha
ainda podem afogar os sonhadores.

Trago agmas enferrujadas
nessas cordas vocais onde eu quis me enforcar.

Canto.

Povoo de vento a boca desdentada
desta alvorada veloz.

Na coxia anasalada de uma sílaba forte
talvez haja redenção, talvez não.

domingo, 10 de agosto de 2014

SOBRE A NOITE EM QUE DECIDÍ NÃO SALTAR




O quê sou eu, além deste corpo que sobrevive?

Sou a reunião de células e vontades, sou gametas e verdades.

Sou todas as impossibilidades desmentidas, o fato, o feto, a vida.


O quê sou eu, além deste exilado, este que não saltou de um décimo andar qualquer

ao provar num dia primeiro, num ano novo, o veneno de um velho perfume de mulher?


Digo, sou a estrela cadente que se recusou a ser finada

e prosseguiu voando, num arco eterno, oriente a ocidente, do tudo ao nada.


O quê sou eu, além deste corpo que sobrevive?

Sou todos os amores que tive e não tive, e sou ainda muito mais

pois trago em mim todos os brilhantes segredos ocultos nas fossas abissais.


O quê sou eu, além deste banido, este que não voou entre os artifícios de fogo

que emolduravam a cena tranquila desta corte onde sempre fomos os bobos?


Digo, sou a mais bela equação, o romance épico numa versão jamais publicada:

o poema do amor perfeito, que não existe, mas resiste, no ventre do vento, no seio do nada.


sábado, 9 de agosto de 2014

SENTENÇA


Para além do horizonte que borda de vermelho-marinho 
a linha curva deste oceano de chumbo e sonho...
Para além das torres de marfim que se erguem das ilhotas que bocejam
grávidas de caranguejos tristes neste fim de tarde...

Para além dos guardanapos onde o bardo sem nome depositou
seu último verbo voraz, sua pérola de papel amassado...
Para além dos casarios do Méier, descendo a Dias da Cruz
sob aplausos das amendoeiras que teimam em sobreviver...

Para além dos sobrados da Gamboa, onde as putas e os poetas sonham
com dias melhores numa terra sempre ruim...
Para além do sol rascante de Bangu e das coxas magras das raparigas
espremidas num bólido lotado em Marechal Hermes...

Para além dos cassinos (jamais clandestinos) da Rua Holanda, ao lado
da antiga Mesbla, uma quadra depois da Banca do Osório...
Para além dos tiros da Maré e dos profetas do Sapê, entre os nenúfares
que do mangue despontam como ogivas de celofane...

Para além das janelas fechadas dos apartamentos do Jardim Botânico,
das arcadas defloradas e das balaustradas leoninas da Fonte da Saudade...
Para além das ruivas que gastam tristes cobres nas boutiques do Leblon
e das negras sorridentes que dobram os joelhos na Igreja da Penha...

Para além dos dezoito silenciosos torcedores fanáticos do América
e das minhas vinte e três ex-namoradas delicadamente histéricas...
Para além das bundas empinadas dos mordomos sexagenários do Cosme Velho
e das carteiradas infantis dos promotores públicos de pênis flácido da Barra da Tijuca...

Para além das mesas de sinuca da Lapa e do pastel com garapa em Xerém,
e mais distante ainda que as lindas colinas para onde vão os trens de Machambomba...
Para além dos falsos sabres de luz dos black blocs de Laranjeiras,
e dos jambeiros floridos nas doridas calçadas da Sulacap...

Para além das pitombas raioativas colhidas nas ravinas do Joá
e das saias de tergal das freias feias e fortes que caminham na Usina...
Para além das rimas desbocadas das nove poetas muito mal comidas
que juram ter oito amantes virtuais que, dizem as más línguas, são caras muito legais...

Para além do papo cabeça dos feirantes num domingo em Osvaldo Cruz,
e das homéricas festas de suingue com senadores e pugilistas do Alto da Boa Vista...
Para além das entrevistas de emprego frustradas no estranho bairro da Abolição,
e os malogrados amores biônicos nascidos ao meio-dia na Praça Saenz Peña...

Para além das treze novenas rezadas pelas matronas de Padre Miguel,
sob um céu cáqui entre nuvens de uma poeira chamada pirlimpimpim...
Para além das mãos velozes das debutantes que nos abriram os zíperes
numa noite fria, de sangue quente, num inverno tropical...

Para além das palmas que desembolsamos nos saraus do Catete
louvando a falácia bêbada dos nossos heróis de meia tigela...
Para além da brancura das mãos dos candidados a suplente de vereador 
que beijam a mão preta das madames desdentadas da festiva Madureira...

Para além dessas tardes inteiras em que os desempregados sonham 
com qualquer coisa que não seja essa imobilidade vertiginosa e causticante...
Para além dos xiliques e dos rompantes das filhas ricas dos incas venuzianos
que acham difícil escolher entre murta e linho, sangue e porra, tequila ou vinho...

Para além dos seios empinados das estudantes do Colégio Santo Antônio dos Três Olhos
que tentam escapar do nosso olhar de lobo impotente mas feliz...
Para além da raiz morena dos cabelos loiros das vilãs da televisão
e dos perfumados pùbis das filhas do pastor Leonel, do Itanhangá...

E para além dos vidros fumê da funerária Monte Carmelo, onde há uma roleta
onde a gente pode confiar, e jogar entre os caixões, e ter fé no número vinte e três...
E para além dos porões dos quartéis do Realengo, onde o coronel Vilaça
devora rapazes depenados e vendidos por doze reais e cinquenta centavos o kilo...

Para além dos dias em que comemos sopa de ostras com tomate, sem as ostras
e tomamos o suco de vulvas virgens com limão siciliano, sem os limões...
Para além dos salmos que cantamos escondidos para não despertar os crentes
que entre cercas de arame farpado observam com olhos de pardal...

Para além dos sonetos portugueses da minha adolescência
e de todos os discos do Bob Dylan que não comprei quando podia...
Para além das fantasias de carnaval e dos trajes ecumênicos
que se confumdem na Quaresma incerta e linda, imaginada por nós, infiéis...

Para além de todas as almádenas de cabeça quebrada
e todos os atalaias vencidos pelas mágoas da noite anterior...
Para além do rumor dos computadores e dos estertores da lei
dos ídolos com braços de fibra óptica...

Eu miro de olhos fechados e vejo fatalmente declarada 
a sentença entre as sobrancelhas brancas deste mundo: 
para além, muito além de toda a vã poesia,
amanhã, definitivamente, vai ser outro dia!

sábado, 2 de agosto de 2014

VOCÊ VAI QUERER UM FÍSICO NO SEU FUNERAL




Aqui vai uma tradução livre, muito livre, com algumas adições poéticas minhas (peço licença) do excelente texto "You Want A Physicist To Speak At Your Funeral" do jornalista americano Aaron Freeman. 

VOCÊ VAI QUERER UM FÍSICO NO SEU FUNERAL 

No meio de tantas perdas e tantos questionamentos sobre o medo da perda, eu, perdido num mar de idéias e crenças, procuro o Cosmo, e espero que o Infinito me conceda senão sabedoria, ao menos conforto. E no meio de tantas perguntas, rascunho sobre os rascunhos de um jornalista que tinha as mesmas questões, eternas, perenes, sobre essa partida, que deve ser apenas um até logo.

A vida é um sopro. E o fôlego do universo não cessa.

Você vai querer um Físico no seu funeral, podes crer.  E sigo explicando (apostolando, advogando, tentando te convencer sobre) o motivo disso...

Você vai querer que ele explique aos seus familiares em luto sobre a 'Lei da Conservação da Energia', e então eles vão entender que sua energia não acabou quando você morreu. Você vai querer que o Físico lembre a sua mãe soluçante sobre a 'Primeira Lei da Termodinâmica', explicando que nenhuma energia é criada no universo, e nenhuma é destruída. Você vai querer que a sua mãe saiba que toda energia, cada vibração, cada BTU de calor, cada onda de cada partícula que constituía seu amado filho permanece com ela no mundo. Você vai querer que o físico lembre a seu triste pai que em meio a energia de todo o cosmos, você ainda existe. Você persiste, não sob a mesma forma, mas em diferentes espectros energéticos.

Em um certo momento, você esperará que o Físico desça do púlpito e caminhe em direção a seu marido desolado, ou sua esposa de coração partido, explicando a ele que todos os fótons que um dia saltaram do seu rosto, todas as partículas cujas trajetórias foram interrompidas pelo seu sorriso, ou pelo toque dos seus cabelos, centenas de trilhões de partículas que corriam por aí como crianças, tiveram seus caminhos modificados para sempre por sua causa. E quando o seu amor se atirar nos braços dos familiares procurando por conforto, que o Físico explique que todos os fótons emanados de você foram reunidos nesse belíssimo detector de partículas que são os olhos dele, e que esses fótons, criados dentro da constelação de neurônios eletromagneticamente carregados por dele, existirão para sempre. Para todo o sempre!

E o Físico lembrará a todos que muito da nossa energia é perdida na forma de calor. E enquanto ele explica isso, muitas pessoas estarão se abanando devido ao calor deste dia, ou se protegendo do frio, que seja. Então ele vai explicar que o calor que fluía através de você enquanto você vivia ainda está aqui e é parte do todo que nós somos. As trocas energéticas são isso mesmo: trocas. E todas as energias trocadas seguem se transfigurando infinitamente.

E você vai querer que o Físico explique àqueles que te amaram que eles não precisam ter fé ou religião. Mas eles podem ter, se quiserem, pois a fé é um conforto, também. E a fé com sabedoria é difícil, mas não impossível. E mesmo o impossível deveria ser desejável a todos nós, pois tudo é impossível até que alguém o faça. 

Ele vai explicar também que os cientistas conseguem medir e quantificar muitas coisas, e que eles já concluíram o quanto a 'Lei da Conservação da Energia' é acurada, verificável e consistente através do tempo e espaço. Então a sua família procurará pelas evidências e ficará satisfeita ao descobrir que a ciência é sólida e que eles podem, portanto, sentir um conforto enorme ao lembrar que a sua energia ainda está por aqui. De acordo com a 'Lei da Conversação da Energia', nem um pouquinho sequer de você vai embora com a morte; você apenas passa a existir de outra forma, uma forma menos organizada, porém mais livre. E isso, eu creio, é voltar ao seio do Universo, o que muitos chamarão de voltar ao 'Cosmos' ou a 'O Criador'.

Amém.

[Marcelo Sousa (Agosto de 2014) d'aprés Aaron Freeman (Junho de 2005)]