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sábado, 9 de agosto de 2014

SENTENÇA


Para além do horizonte que borda de vermelho-marinho 
a linha curva deste oceano de chumbo e sonho...
Para além das torres de marfim que se erguem das ilhotas que bocejam
grávidas de caranguejos tristes neste fim de tarde...

Para além dos guardanapos onde o bardo sem nome depositou
seu último verbo voraz, sua pérola de papel amassado...
Para além dos casarios do Méier, descendo a Dias da Cruz
sob aplausos das amendoeiras que teimam em sobreviver...

Para além dos sobrados da Gamboa, onde as putas e os poetas sonham
com dias melhores numa terra sempre ruim...
Para além do sol rascante de Bangu e das coxas magras das raparigas
espremidas num bólido lotado em Marechal Hermes...

Para além dos cassinos (jamais clandestinos) da Rua Holanda, ao lado
da antiga Mesbla, uma quadra depois da Banca do Osório...
Para além dos tiros da Maré e dos profetas do Sapê, entre os nenúfares
que do mangue despontam como ogivas de celofane...

Para além das janelas fechadas dos apartamentos do Jardim Botânico,
das arcadas defloradas e das balaustradas leoninas da Fonte da Saudade...
Para além das ruivas que gastam tristes cobres nas boutiques do Leblon
e das negras sorridentes que dobram os joelhos na Igreja da Penha...

Para além dos dezoito silenciosos torcedores fanáticos do América
e das minhas vinte e três ex-namoradas delicadamente histéricas...
Para além das bundas empinadas dos mordomos sexagenários do Cosme Velho
e das carteiradas infantis dos promotores públicos de pênis flácido da Barra da Tijuca...

Para além das mesas de sinuca da Lapa e do pastel com garapa em Xerém,
e mais distante ainda que as lindas colinas para onde vão os trens de Machambomba...
Para além dos falsos sabres de luz dos black blocs de Laranjeiras,
e dos jambeiros floridos nas doridas calçadas da Sulacap...

Para além das pitombas raioativas colhidas nas ravinas do Joá
e das saias de tergal das freias feias e fortes que caminham na Usina...
Para além das rimas desbocadas das nove poetas muito mal comidas
que juram ter oito amantes virtuais que, dizem as más línguas, são caras muito legais...

Para além do papo cabeça dos feirantes num domingo em Osvaldo Cruz,
e das homéricas festas de suingue com senadores e pugilistas do Alto da Boa Vista...
Para além das entrevistas de emprego frustradas no estranho bairro da Abolição,
e os malogrados amores biônicos nascidos ao meio-dia na Praça Saenz Peña...

Para além das treze novenas rezadas pelas matronas de Padre Miguel,
sob um céu cáqui entre nuvens de uma poeira chamada pirlimpimpim...
Para além das mãos velozes das debutantes que nos abriram os zíperes
numa noite fria, de sangue quente, num inverno tropical...

Para além das palmas que desembolsamos nos saraus do Catete
louvando a falácia bêbada dos nossos heróis de meia tigela...
Para além da brancura das mãos dos candidados a suplente de vereador 
que beijam a mão preta das madames desdentadas da festiva Madureira...

Para além dessas tardes inteiras em que os desempregados sonham 
com qualquer coisa que não seja essa imobilidade vertiginosa e causticante...
Para além dos xiliques e dos rompantes das filhas ricas dos incas venuzianos
que acham difícil escolher entre murta e linho, sangue e porra, tequila ou vinho...

Para além dos seios empinados das estudantes do Colégio Santo Antônio dos Três Olhos
que tentam escapar do nosso olhar de lobo impotente mas feliz...
Para além da raiz morena dos cabelos loiros das vilãs da televisão
e dos perfumados pùbis das filhas do pastor Leonel, do Itanhangá...

E para além dos vidros fumê da funerária Monte Carmelo, onde há uma roleta
onde a gente pode confiar, e jogar entre os caixões, e ter fé no número vinte e três...
E para além dos porões dos quartéis do Realengo, onde o coronel Vilaça
devora rapazes depenados e vendidos por doze reais e cinquenta centavos o kilo...

Para além dos dias em que comemos sopa de ostras com tomate, sem as ostras
e tomamos o suco de vulvas virgens com limão siciliano, sem os limões...
Para além dos salmos que cantamos escondidos para não despertar os crentes
que entre cercas de arame farpado observam com olhos de pardal...

Para além dos sonetos portugueses da minha adolescência
e de todos os discos do Bob Dylan que não comprei quando podia...
Para além das fantasias de carnaval e dos trajes ecumênicos
que se confumdem na Quaresma incerta e linda, imaginada por nós, infiéis...

Para além de todas as almádenas de cabeça quebrada
e todos os atalaias vencidos pelas mágoas da noite anterior...
Para além do rumor dos computadores e dos estertores da lei
dos ídolos com braços de fibra óptica...

Eu miro de olhos fechados e vejo fatalmente declarada 
a sentença entre as sobrancelhas brancas deste mundo: 
para além, muito além de toda a vã poesia,
amanhã, definitivamente, vai ser outro dia!

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