Ask Google Guru:

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

APOGIATURA



 


Silêncio. 


Houve uma ilha de silêncio no oceano da cidade. As marés vagavam intranquilas à nossa volta. A algazarra fazia hiato. Os gritos se estilhaçavam contra a muralha de calma que se levantou entre nós.


Lembro que tudo era gris. O mar, os prédios, a montanha, até as árvores e as pessoas pareciam cinzentas. Mas naquele instante sem nome, sem foto, sem dono, naquele instante o firmamento rasgou-se devagar, e do tecido roído brotou o azul. E era desesperadamente azul aquele pedaço do cosmos sobre nossas cabeças.


Nossos dedos se tocaram, daquele jeito que fazemos sem notar, formando uma corrente de carne e aço. Nossos ossos tremeram, mas nossos olhos não se turvaram, o mundo fez uma pausa de mais de mil compassos, como se entre sístole e diástole houvesse tempo para contar uma história inteira.


De repente, estávamos dançando. Ela sorria com olhos e boca, e seus cabelos negros davam inveja à noite, e sua pele branquinha desdenhava do dia. Éramos os últimos habitantes do planeta, e todas as palavras não ditas faziam inveja aos poetas.


Lembro que o mundo parou para ver a bailarina sambar aquele miudinho cheio de bossa. A curva bonita de suas ancas e os seios de romã brincando de esconde-esconde entre as flâmulas de seda, o vestido roçando a pele feito nuvem que faz carinho nos topetes das montanhas.


Silêncio.


Aquele silêncio tinha cor, perfume, e era tátil como as teclas de um piano. E convidava. Não era preciso saber qual, como, onde e quando. O convite era para um silêncio salpicado de melismas assombrosos, com espaços perspontados de gemidos de sôfrega alegria, dessas que a gente não sai contando por aí, com medo de gastar a lembrança.


Recordo, houve uma ilha de silêncio no oceano da cidade. Palco perfeito, sem holofotes. O dia foi ficando castanho, os pardais entre as palmeiras chamando o sol para dormir... Foi assim que acordei, numa dessas varandas perdidas numa lembrança talvez vivida, talvez inventada, talvez - o que é mais certo - simplesmente sonhada.


Acordei naquela varanda, o pêndulo da rede fazendo cócegas nos meus sonhos, o ar pulverizado de música, a silhueta de uma ninfa dedilhando no piano as melodias que eu ouvia muito antes de nascer.


Era outono. É sempre outono em meus sonhos. 


As folhas caíam como dias passados. Eu lembro. Eu estava lá quando um azul imenso abriu uma cicatriz na pele morna do dia.


Uma ninfa tocou aquela canção de ninar a tarde inteira, e eu imaginei claves de sol brilhando no céu cinzento.


Uma ninfa. E uma canção de ninar.


Sempre que lembro aquele momento, posso jurar que enxerguei seus dedos cantando. Foi a primeira vez que a vi dedilhar o clavinote como quem faz festa com o próprio corpo, instigando o tempo a parar, sentar e ouvir. 


Uma ninfa reinventou o silêncio. 


E os acordes que ela tocava faziam cachinhos nas madeixas do vento.

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

SÓ DÓI QUANDO EU SORRIO





Há dias em que me lembro que existir dói. E dói muito - na maioria das vezes - ou fica naquela dorzinha chata, persistente.

Então percebo que todos os dias são assim. E sorrio por isso: algumas vezes o riso nervoso de quem não sabe ou não tem outra coisa a fazer; outras vezes o sorriso tranquilo e gostoso de quem aceita que enquanto estiver doendo, estamos existindo. E sei que existir não significa viver, não completamente, mas não há vida sem existência, por isso existir é um ato de resistência. 

Existo, logo, viverei. O que está, cedo ou tarde, será. Eis que a dialética de Shakespeare me assalta com seu "ser ou não ser" tão mastigado, porém nunca esvaziado. O chiclete do bardo continua doce e colorido, como um enigma entre os dentes de um menino-deus que se percebe gigante, enorme como a projeção das sombras que sua figura lança nas paredes azuis do Cosmo.

Há dias em que viver simplesmente dói. Nos outros, dói muito. Em todos esses dias, ao olhar meu rosto fisgado pela promessa de finitude refletida em cada átomo do meu corpo, tento sorrir. Tento contentar-me, porque ser contente é fundamental. Ser feliz é outra coisa, estar alegre também. Mas o contentamento, por princípio, é o fundamento de tudo o que nos anima, o que redunda, pois o alimento da alma é o ânimo, alento, seja pela brisa que acaricia ou pelo vento que fustiga.

Por isso, nesses dias em que tudo dói, tento sinceramente sorrir. E sorrindo sinto doer mais ainda. E quanto mais sinto mais me contento, e esse contentamento me alegra: estou vivo! Porque o fim da dor é o fim da vida. E toda alegria tem a obrigação ontológica - epistemológica - de ser dolorida.