Ask Google Guru:

segunda-feira, 22 de junho de 2015

NÃO NOS TOCAMOS




Não nos tocamos.
Houvesse o momento,
o ensejo, ainda assim, não

vibraria alto e claro como os sinos
que redobram quando nossos olhos se encontram,
faíscam, esplendem, e depois se apagam

sob os clarins
de uma paz magoada
como um amar sem querer.

Não nos tocamos,
é preciso repetir
para crer.

A boca breve
negou seu beijo
com o vagar de quem nega

aceitando, pedindo, o peito
arfante como quem se arrepende
de um crime perfeito.

Senti o gosto do seu gesto, apenas ensaiado.
Mas o arco da vontade não se ergueu
sobre a minha silhueta.

O facho
da mão que se levantou
no pensamento

não brilhou sobre a minha carne,
anoitecida, parada, inerte, imóvel,
presa à realidade.

A pele,
contra minha pele,
um ectoplasma.

O hálito como um vento matutino
roçando sobre as campinas invernadas
da minha vontade.

A sombra do seio
como uma adaga a apontar
gentilmente, como quem ameaça.

O perfume da voz
deslizando seu sabor metálico
de maçã-verde mordida na véspera.

As coxas tectônicas sobre as minhas coxas,
de leve, como as forças ocultas que devagar
fazem rolar os terremotos.

Os dedos como labaredas fustigando os pêlos
de minha barba, como as foices que desafiam
a força verde dos bambuzais.
Aquela manhã irrompeu sobre o mar
suas ogivas azuis implodindo os deliciosos
temores da madrugada.

Mil alvoradas não seriam suficientes
para apagar o que estava prestes
a desacontecer.

O arpejo furtivo deste poema
não faz jus à força daquele contrato:
amor sem desejo, toque sem tato.

Diz a lenda que numa certa catedral de carne e sonho
redobram mil sinos quando estes olhos se encontram,
faíscam, esplendem, e depois se apagam

sob os clarins
de uma paz tão magoada
quanto um amar sem querer.

Não nos tocamos.
Jamais nos tocaremos.
É preciso repetir para crer.

GUERRA E PAZ






Corpo,
meu querido fardo,
tens sido infiel companheiro
já faz mais mais de trinta anos
e ainda não nos entendemos.

Tuas curvas me iludem,
teus maciços vão se esfarelando no vão das horas
como as cordilheiras que se desfazem em pó
ao sabor do vento de qualquer monção.

Sei que erramos o caminho
mas só por isso encontramos contento
pedindo paz, pedindo guerra,
pedindo nuvem, pedindo terra.

Corpo
amado amigo e carrasco
tens o peso exato das minhas vontades
e a leveza paquidérmica de todas verdades.

Não me deixes ainda,
pois estou ereto, tranquilamente alerta,
provando, tateando partes recém-descobertas
do meu tu-espelho, do nosso eu-poeta.

Teus sinuosos engenhos
jamais foram menos pungentes que o restante
de vida que me sobra em cada sonho não sonhado:
és ao mesmo tempo porto e navio naufragado.

Corpo, que de outros corpos fartou-se,
perdeu-se na doce ausência de quem está mas não é.
Entre orvalho e trovão, sei que és chuva:
corre deitado e cai de pé.

No turbilhão da vida
seu tempo medido em ânforas de carbono animal
desenhou destinos variados, desdenhou recados
dados por deuses tolos e demônios sem pecado.

Logo chegaremos numa esquina qualquer
onde quiçá a morte, ou quem sabe outra sorte
nos colocará na gostosa presença da extinção
disfarçada num beijo de mulher, ou coisa que o valha,
pois o corpo só descansa na batalha.

Assim, no fim de tudo
saberei recomeçar, (?) aceitar o divino convite
para não ser mais corpo, (?) como faz a cigarra
que explode em mil cores (casulo-corpo-segredo)
para a incerta renovação do eu, mas não do ego?

Difícil saber, pois o saber pertence
à mente, não à alma, muito menos ao corpo.
A ele cabe apenas o sentido imediato de se crer vivo ou morto.
Enfim, a ele - o corpo - cabe ser, ao mesmo tempo,
refúgio e degredo.

No corpo (nosso, ou do outro)
jazem todas as nossas certezas,
e fatalmente os nossos medos.

Todo corpo é uma guerra
e é somente nela que podemos
ter sossego.

domingo, 14 de junho de 2015

UMA PENA




[Amor,
olha ali uma pena,
que pena...]

Olha o teu pássaro, 
este passarinho muito seu, muito livre, liberto
pela esperta magia da sorte, da morte, da vida
ida, vivida, olha, mira, esse teu pássaro bonito, aflito,
o teu passarinho, que não está mais lá, mas dança, e descança,
e alça voos maiores, que teus olhares já não alcançam, amor, meu
amor, olha ali o teu pássaro, o teu passarinho, que veio sozinho deixar
uma pena, outra pena, muitas penas, pra você, amor, nosso amor,
neste contratempo, vão, tempo que é onda (vai, vem, sonda,
perde, acha, mira, reencontra) e é teu, teu fado, enfado,
recado, mensagem, de quem resiste, existe ainda
no quando-sem-onde, nesse onde-sem-quando
nós, só nós sabemos, existe a pena,
a pena apenas, essa única pena
paga nas vagas desse
[ou de outros, tantos]
poemas.