Ask Google Guru:

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

POR UM TRIZ




- Um, dois, triz!
- Vale um bis?
- Não, isso a carta não diz.
- Vide o verso, a vida.
- Tarde demais.
- Já estás de partida?
- Tomei partido.
- Deixa rolar.
- Meu tempo é quadrado.
- Não me enrole.
- A luz, aqui, faz curva.
- É o tempo passando.
- É o tempo pesando.
- É o momento...
- Cabendo em nós...
- Como uma luva.
- Leve.
- Levíssimo.
- Como um paquiderme.
- Sobre a derme.
- Dorme.
- Agora.
- Ufa, passou!
- Passei?
- Quase morri.
- Isso se faz toda hora.
- Engoli um hiato.
- De fato?
- De novo.
- Mais gole?
- Um, dois, triz.
- Não esqueça de pedir...
- Bis!
- Mais uma?
- Perdi o tom.
- Que dó!
- Garçom!
- Ainda há tempo?
- Pra ser feliz?
- Pra aprender a só ser.
- Bem, isso a carta não diz.


domingo, 24 de fevereiro de 2013

A BAILARINA






A mecha de cabelo estratégicamente deixada ao léu, que a mais tímida brisa faz dançar sobre a moldura daquele rosto. A seda verde-pérola da segunda pele, essa camiseta cuja alça escorre displicentemente pelo ombro esquerdo. O seio convidativo, arrogantemente desafiador, inadvertidamente perfeito, semi-oculto, obtuso, docemente coberto por brumas de uma cotidiana poesia. O gesto afrancesado de pegar a taça, levar o néctar à boca, e sorrir com os olhos após um gole imperceptível de vinho e vida. O cruzar de pernas, o dedilhar do piano, o pincelar sem pressa em telas reais e imaginadas. A pele branquinha imitando as ondas de espuma que ultrapassam a fímbria do mar bordando todos os cantos do dia. A conversa boa em som miúdo, voz baixa, cantiga de paciência e paz... Tudo se resume a uma sábia simplicidade de desatar os mais complicados novelos, e saber de delícias que vão além de pele e pêlos: há certos dias em que o amor elide a carne, e brota como uma flor na base do cerebelo.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

REQUIEM PARA UM SONHO






Visitou-me noutra noite o meu herói.
Meu avô-menino com suas barbas de algodão.
Purpurina nas bochechas, sua capa de cetim, a espada de jornal.
Uma tampa de panela, amassada e amarela, era o escudo em sua mão.

Cavei uma resposta em suas órbitas vazadas.
Procurei algum sentido em tuas mãos de pardal.
Nas bochechas purpurina, nas mãos a tampa amarelada.
E no gesto inesperado a agudeza inocente de uma espada de jornal.

Não ditou secretos mantras, não revelou segredos, não veio rasgar véus.
Não falou qualquer poema, mas trovejava com calma o seu olhar.
Senhor dos mil espelhos, vilão e redentor, velho inimigo meu.
Palhaço do circo místico chamando todos para brincar.

Nove círculos perfeitos desenhados na nuca.
Sete luas de prata suja, sete ventos poeirentos.
E as borboletas em chamas azuis tão lindas.

Quem é este que se desprende de minha sombra?
Quem alumbra meu lado escuro quando estou só?
Quem percebe o ponto negro na superfície do sol?

Velho inimigo dos meus dias, espelho de todas as noites.
Cava em mim o sentido alado e fugidio, triste ave de rapina.
Arranca de minhas órbitas esses olhos arregalados de arlequim.

Sete voltas de espinhos cravados em tua nuca.
Nove vidas empoleiradas numa gaiola de cristal.
E as chamas azuis faiscando nos teus olhos de pardal.

Quem é esse desdentado que tanto ri para o espelho?
Que sol de chumbo derretido joga sombras nos meus dias?
Quem perceberá a pele do outro sob as unhas da poesia?

AS 182 ESTÂNCIAS DO CÉU E DO INFERNO





Escadas inúteis.
Janelas exageradas.
Paredes limpas demais.
Olhos descascados.
Desejos contidos.
Mãos encarquilhadas.
Corredores brancos demais 
Geralmente não levam a nada.
A proximidade pode trazer carinho
Porém mais certo é que faça fricção.
O coração em sua rotina muscular
Não canta, nem pode falar.
O vinho não sacia.
As sedas envolvem
Mas não acariciam.
Haverá espinhos
Sob essas almofadas?
O cotidiano embaça
Os espelhos.
Verdades inauditas
Com pesar são respiradas.
Toda perfeição,
Cedo ou tarde,
Enfada.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

ÂMBAR-GRIS




Amanhecer em Praga.
Passar uma tarde no Rio 
E ver o sol poente em Paris.
Ou apenas trocar tudo isso
Por um mergulho infinito
No abismo mais bonito 
Do teu olhar âmbar-gris.

OCEANOS




Todas as miudezas me inundam.

O DENTE-DE-LEÃO



De repente
A delicada figura
De um dente-de-leão
É o esperado bote salva-vidas
Trazido no relicário perfeito das tuas mãos.

[Pequenos milagres cotidianos, 
E outras histórias.]

CHOCOLATE






Todas as calorias, os elementos naturais
E mais o melhor que a ciência pode fazer
Para com açúcar e afeto matar os homens.
Tudo o que tem gosto de noite de inverno
E cheiro de intimidade dividida com delicadeza.
Todas as lembranças maliciosas da infância
E as infantis memórias da vida adulta.
Tudo me vem agora enquanto abro
Esta embalagem dourada e perfumosa.
Contemplo uma barra de chocolate.
O poema fica pra depois.

CARINHOS



E ela disse "eu te amo"
com a ênfase de quem mente
por amor.



LUZ






Talvez um coquetel
De potássio, cloretos
Ácidos variados
Bromatos, brometos
Todo tipo de fel
E muitos açúcares
Misturados a essa mágoa 
E com todo esse cansaço
Possa resultar num merecido 
E esperado sono de Hamlet
Um sono eterno, em compasso
De bossa ou minueto
Entre brumas e nenúfares
Talvez dedilhando o Réquiem
Ou cantando o Ulalume
Tonto de vida e morte
Sorte grande em arrebol:
Eu seria um vaga-lume
Pairando entre os sargaços
Bocejando ao nascer do Sol.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

SANCTUS






Meu melhor inimigo
este corpo exíguo
que se desfaz com calma
transformando matéria em alma.

Esta melhor parte de mim
já nascida para ter um fim
é o que se esconde sob minha pele:
o que o corpo ama, o espírito repele.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

GRITOS








O ausente grita.
Incomoda, troveja a noite toda.
A saudade ecoa em túneis cavados sob a pele.

DOMINGO


Dor de cabeça.
As unhas cravadas nas palmas.
O peito arfante, os braços pandos.
As asas atrofiadas.

O sol e o mar inúteis.
Os coqueiros dançando pra ninguém.
O vento assobiando inoportunas alegrias.
O tempo escorrendo pelos cantos do dia.

Dedilhei o piano sem convicção.
Dedilhei meu corpo sem paixão.
Dedilhei teclas vazias, frias.
O poema não veio.

Os sais de banho.
O prosecco fora de hora.
O pássaro bonito cantando lá fora.
Mimos de um tempo irresoluto.

No escritório, tubos de tinta.
A caneta de pena de condor.
O tinteiro francês, o cinzel, a cera.
O almofariz, as telas, os pincéis.

Janelas, janelas. E mais janelas.
Nenhuma cortina vence o sorriso do mundo lá fora.
De repente o cristal despedaça meus olhos de vidro.
Taça quebrada, vinho e sangue, pintura completa.

Silêncios perdem-se na cantoria dos sabiás.
Bem-te-vis cumprimentam-se escondidos nas amoreiras.
Uma família de micos-leão faz festa. Há fogo na mata.
Tanta beleza, assim sem esperança, não fará mal?
Será domingo, carnaval?

Pra quê tanto azul, tanto verde?
Pra onde vão essas garças e albatrozes?
Os barcos passam coloridos na lagoa dourada.
Velas se acendem no oco dos troncos retorcidos.
Onde descansar meus olhos cansados de tanta luz?

Nada descreve esses tempos.
Tudo sobra e é escasso: contrários se locupletam.
Há dias em que simplesmente existir
Resume-se a um laborioso, minucioso
Desperdiçar de milagres.

sábado, 9 de fevereiro de 2013

CANIS LUPUS






Paciência.
Eis o feitiço infalível
Dos excluídos pelas Ciências.

O que se diz esperto
Quase nunca está alerta.
O sábio vigia, mas se faz de bobo.

O bom observador aprende
Que nas noites mais claras
É a lua quem chama o lobo!

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

MAGMA





Creia, o que se mostra platônico,
Está muito longe do artificial, do biônico.
Antes, encerra em si poderes atômicos,
E percorre caminhos docemente ocultos,
Por destinos que meticulosamente ao léu
Acabam sendo pontualmente britânicos
A arrancar-nos todos os véus
E morder a carne, e lamber os ossos
Deixando na face do apaixonado um sorriso
Bobo, irônico:
Posso, mas não quero;
Desejo, mas não posso!

O ócio da pele demanda o toque,
Assim como o silêncio
Pede gemido, bossa e rock.
Assim é amar em segredo,
Ou nem tanto:
O que não se diz sorrindo
Talvez se diga melhor em pranto.
Eis o poder maior do amor platônico,
Ele rola poderoso
Como os trovões no céu,
Ou escorre vagaroso 
Como abelhas a engendrar seu mel,
E sempre magoa, flutua maltratando
Sem perder seu perfume balsâmico
Como o seio da terra sangra 
Sem alarde o magma vulcânico.

[ Sobre o amor, e outras doenças deliciosas. ]

O TERCEIRO




Sempre fui terceiro,
Sorrateiro em chances e vontades,
Cérbero, Medusa, Hidra a preparar o bote.
Filho de trevas apresentadas no picadeiro,
Palhaço que se esquiva dos holofotes!

Sempre fui terceiro,
De mirar o alheio não me canso,
E sempre que tua voz me invade
Sei que posso ser atroz, herói ou manso
Habitando tua cama já povoada: Olimpo e Hades!

Sempre fui terceiro
Aguardando tua poesia obtusa.
Tua bossa descalça e muito bacana
Arranca saias com a delicadeza, e ousa
Abusar como quem abençoa, e usar como quem se excusa.

Sempre fui terceiro
Nestes mènages atrozes, vorazes, velozes
Onde a mão que o salmo escreve também se atreve
A passear por recônditos onde Shiva, Javé, Jah e Maomé
Nadam no ar, de New York a Pequim, da Rocinha a Gizé.

Sempre fui terceiro.
Tuas afrodites, calíopes, nereidas, perséfones, reginas
São inspiração do meu secreto gozo, das prediletas rimas
Que pululam meus versos, meus gostosos e perversos devaneios
De injetar doces vilões e cáusticas heroínas sem pudor, direto nas veias.

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Wikiperfídia: "Terceiro", aquele que, não tendo sido convidado para a festa, goza olhando pelas frestas. O poeteiro nato, por assim dizer.

domingo, 3 de fevereiro de 2013

CARTAS DE ALCATRAZ



Um tronco bordado pelo limo do tempo passa flutuando.
O vento do fim da tarde faz cócegas na barriga da lagoa.
O sol põe fogo no mar mergulhando num horizonte distante.
As chalanas passam cheias de olhos curiosos.
Nuvens bojudas adernam como caramujos de algodão.
A lua escorrega por trás das montanhas.
Estrelas cadentes saltam dos olhos dos gatos.
Bêbados caminham como dândis esfarrapados.
Urubus observam atentos em voos que sujam o céu de carvão.
Há corvos por todos os lados, entre outros rapineiros alados.
Nada é por acaso, nem despido de segundas intenções.
Quem atou-me a esses nós? Quem calou-me a voz?
Em mim, nós desatados. Em nós os laços a se afrouxar.
Os minutos passam com uma tranquilidade de túmulo faminto.
As tintas descascam das paredes, dos olhos, dos hábitos.
Pelas arestas percebemos olhinhos pretos e miúdos.
E os porcos com seus focinhos àvidos nunca param de farejar.
Viver é praxe, a rotina dolorida, dourada, uma eterna festa,
Com ares de comédia burlesca ou dramática farsa
Numa penitenciária ensolarada com vista para o mar.