Ask Google Guru:

terça-feira, 15 de dezembro de 2015

MÁRMORE NEGRO




Reparo 
que há um veludo 
muito bem gasto no gesto comum
e que sobre o mármore negro do cotidiano
há pequenas manchas de contentamento 
e mágoa. 

Trago 
ânforas de cansaço
nas costas, espáduas, 
quadris, artelhos, espírito, 
e na alma. 

O tempo flui, pesado, 
mas veloz, com a calma 
nervosa dos que morrem aos poucos, 
escorrendo por caminhos tortuosos, 
por veias, vias rubras onde 
se guardam tesouros 
ignorados.

A gente sorri, diz 
bom dia e boa noite, pede 
desculpas, concede a bênção, 
dá licença, e sobrevive, por que é preciso 
[precioso] sobreviver, resistir, fingir que a carne 
entende todo fingimento, necessidade de estar 
em paz [no vácuo das bombas] enquanto 
tudo o que é sólido, eterno, desfaz-se 
graciosamente no ar, diante do vidro 
embaçado dos (nossos) 
olhos.

Há tempo
para pisar flores,
levantar a guarda, cultivar
amores vãos, cavar trincheiras,
palavrar poemas inúteis, como
todos hão de ser, sempre,
e sempre.

Reparo 
que há um veludo 
muito bem gasto no gesto comum
e que minhas unhas, desafiadas, arranham
o mármore negro do cotidiano, desenhando
este verso (talvez o derradeiro) que erra
tranquilo, em círculos de virtude
e vício.

Trago ainda
essas ânforas de cansaço
sobre as costas, espáduas, 
quadris, nos artelhos, 
no espírito, 
na alma. 

Estou bem.

A máquina do mundo 
mói os dias, mastiga as carnes,
e distribui acenos, desses 
que não sabemos se 
de chegada ou de 
adeus.

Há tempo
para pisar flores,
levantar a guarda, cultivar
amores vãos, cavar trincheiras,
palavrar poemas inúteis, como
todos hão de ser, sempre,
e sempre.

Amém.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

O ANJO DA ALVORADA



Uma fresta
reluz no céu coalhado
de estrelas.

Algumas são mais belas,
outras, quase apagadas,
são fim de festa.

Estamos quase acordados,
e quase amanhece: 
o arcanjo Miguel 

sonha conosco 
e molha a cama. 
Seu corpo têso, 

de barro e louça
quase quebra.
Ele chora? 

Fala com os peixes? 
É licor? Mel?
Breu de vela?

A moça na cama
não vê que a luz pinga
sobre ela.

Outros anjos,
outros homens
devem levantar-se

agora. Viver
é urgente, tarefa diária
para a qual não há protesto.

O anjo se esvai
na melodia da alvorada
dispensando seus amplexos.

Suas asas derretem? 
Ou ele sonha 
que tem sexo?

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

COROLAS




Na corola da manhã 
o azul ultramarino de ontem
escorre líquido por entre as montanhas.

Há paz e medo na íris embaçada
que vê outros olhares
alhures.

Dísticos se desencaixam 
com sôfrega beleza: os ritmos não rimam, 
os poemas são pomares de frutos roxos

que não justificam nem perdoam
o açúcar desperdiçado pelos sonhos
dos infantes.

Prossigo 
encarando minha finitude
como quem espera uma ave matutina

que vem de longe 
trinando seu canto de cristal quebrado, e pousa 
sóbria, antes do enquadramento perfeito da foto.

Minha palmeira invencível 
dorme, mas está atenta. Em seu sono os ventos 
passam alisando-lhe os cabelos que a noite pintou

com as mais bonitas chagas e broquéis
como quem salpica estrelas de fogo-fátuo
num céu nublado.

É preciso arar 
entre os versos que vigoram
para compreender que não há beleza neles

e ainda assim encher os olhos 
de águas claras, lavando o azulejo colorido 
das almas restantes desses delírios mais-que-perfeitos.

Não entender é essencial nessa hora.
Só com as mãos de quem ignora é possível reter
a paz que vigia de dentro desse turbilhão, e dormir

o sono dos bobos, 
com a firmeza rubra dos inconstantes.
Divago, cansado de estar certo em vão.

Errar por certos lugares 
tornou-se o pão de cada dia.
Há algo ameaçadoramente bom no horizonte, 

convém, por isso, quebrar as pernas 
de qualquer ave branca, e com isso fazer com que voe 
sem pouso e sem uso para o chão, faça tensa a pena leve,

e breve a cena imensa, 
desfazendo a aliança frágil e triste
entre o que é e o que deveria ser.

É possível 
que o tempo faça sentido
desfazendo meu corpo de areia 

como faz o vento soprando 
as dunas para onde não se pode vê-las,
grão a grão, para dentro do oceano.

Repito, é preciso quebrar as pernas
de qualquer esperança, qualquer pássaro alvo,
qualquer bicho alado que voe sobre nossa cabeça.

Sem chão, hão de voar melhor.
Como Ícaro entre os escombros, a memória
do voo será feliz como a memória do tombo.

Então, que as aves não pousem jamais, 
nem usem o horizonte como faz o poeta, 
que ara horas acesas enquanto sonha:

na corola da manhã 
o azul ultramarino de ontem
escorre líquido por entre as montanhas.

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

O PESO DA LUZ



Quanto pesa a luz
que evita pousar em tua pele
quando a alvorada passa rente
- lâmina de sol - como esta mão
que hexita, claudica, reivindica, implora
o teu calor, e tu escapas, engenhosa, 
entre os dedos velozes do tempo?

Quanto pesa o gesto
que não se completa, a palavra
esmagada por teu lábio carinhoso
- veludo e vontade, puro aço - agora
que tua carne não se põe em ata
no contrato quotidiano do amor
entre os escombros da noite
e os vestígios do dia?

Quanto pode a tua vontade
agora que és senhora apenas 
da tua própria ausência, mesmo 
quando tua sombra azuleja minha alma
e teus passos - abalo sísmico, cínico -
seguem os dos gatos, pelos cantos
das fotografias?

Quanto queres de mim
hoje que teus poderes acabaram
e as lagunas castanhas dos meus olhos
- águas salgadas, doces marés - secaram
de tanto choro, derramaram tanto ouro,
garimpado sem paz, nos armistícios
declarados à força, senão por amor
apenas por cansaço?

[Amanheceu: sigamos em frente.
Me beija? Toda manhã é boa - mesmo
que amar assim não seja.]

sexta-feira, 6 de novembro de 2015

A FLORESTA QUE SE MOVE




Paro. 
A floresta se move.
A montanha, veloz,

contorna o aro 
quebrado dos meus óculos. 
A luz cai pesada sobre meus ombros.

Os escombros 
da minha alma não me cabem 
na palma da mão direita. 

Um gato se deita
sobre a minha sombra.
Um cão andaluz paira na tela.

Peço ajuda.
Ninguém ouve.
Aplausos na plateia.

Uma torre branca
está para cair: seus cabelos
pegam fogo, ela não grita.

O cavalo amarelo, 
um bispo negro, um galo
português, um falcão maltês,

um monge cego,
a estrela negra ardendo em pleno dia.
Os signos estão postos, em vão.

Não morrerei.
Nem vivo. Comemoro:
a ruína é um berço de ouro.

Paro.
Quebrado, o aro
dos meus óculos

acompanha a curva
do horizonte que se afasta.
Meu poema é uma floresta.

sábado, 31 de outubro de 2015

NO VÁCUO DAS BOMBAS




As palavras não ditas
ficaram grudadas - fina película -
naquela manhã ladrilhada 
de silêncios.

Os cães ladraram sem som, 
os pássaros passaram, porque é tudo 
o que sabem fazer por baixo do alvedrio 
das penas, das plumas e do canto.

Minhas mãos não procuraram 
novos engenhos, firulas, mesuras. 
Nenhuma ciência desembrulhou
mistérios perante meus olhos.

Não fiz poema.
Qualquer rima seria inútil. 
Desejei gritar, mas fui educado, 
magoado e forte, em vão.

Flácido, fluo.
De repente, tudo é fácil.
Calar, desistir, retroceder é possível.

Toda manhã é uma promessa, uma sentença.
Viver é um rio, e é preciso navegá-lo sempre
contra a corrente, pra longe do mar,
evitando as pedras escondidas 
pelas marés.

Minhas musas ousam
saber que já não quero tocá-las.
Uso um sorriso, depois outro.
Tenho mais alguns na gaveta.

Feérica, a hora certa não vem,
mas há minutos simples e quase bons,
feitos de pedra porosa, erva daninha,
pimenta caiena, mexericas mofadas,

morangos silvestres, nuvens de cimento,
sorrisos de criança, pontes inventadas,
o tempo bom e rasteiro dentro de um cigarro, 
uma xícara de café, um abraço, um olhar

por sobre os ombros,
talvez um beijo de lábio seco, 
um poema ruim, uma serpente emplumada,
qualquer jardim sem flor, qualquer versinho de amor.

Tudo o que não foi dito 
nessa manhã reluziu em festa solene,
azulejando nossos salões antes vazios,
agora povoados de silêncios festivos demais.

Guardemos então este momento
áspero e doce, pois a hora certa não virá
como o pássaro bonito, mas como o míssil
voraz e certeiro, sobre nossas cabeças.

Há paz no vácuo das bombas.
E as palavras não ditas ficarão grudadas 
- fina película - sobre a pele dos sobreviventes
nessas manhãs ladrilhadas de silêncios.

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

SALA ESCURA




A cena 
é recorrente - um arpão 
e seu ensejo: a ponta afiada 
de um olhar percebido no arpejo frio 
das retinas, tocaiando um alvo 
que se afasta mas 
não se move.

O metal da íris
embotado nas promessas 
da paisagem, desfaz com calma a firmeza 
das montanhas, os prédios desabam, as famílias, 
minha família desintegra-se no vento como as plumas
de um dente-de-leão, o pão compartilhado
no passado fica embolorado como
o carinho que a vida prática
engoliu, apressado,
bruto.

Por trás das cortinas,
na algazarra contida de um entreato,
mocinhos e bandidos sentam à mesma mesa
e se refestelam, mastigam de boca aberta
e riem alto, os bigodes falsos caindo
por um canto do rosto, malditos
sejam, benditos 
são.

Tento fazer 
um poema: minha métrica
é um soluço, o pensamento claudica
e corre, as rimas sobem escadas e caem 
em açapões, reaparecem tímidas, sorriem com
cara de choro, tentam novamente, e se estatelam de novo, 
dão uma cambalhota, fazem uma mesura para a plateia 
e seguem para a coxia fingindo que triunfaram, 
que são reais os aplausos da claque
num alto-falante quebrado.

O show tem que continuar.

Meu semblante de vilão
é refletido nos telões da metrópole:
falam de mim, sabem de mim, meu sangue
escorre na praça para o espetáculo dos pios,
um rio se forma, mas logo é canalizado,
domado, fadado ao subterrâneo
onde habito feliz, mas
pouco animado.

Temos champagne 
na cadeia, mas falta pão.

Recusei pisar
a cabeça daquela serpente,
chamei-a irmã, deixei que se aninhasse
entre os meus despojos, ofereci a ela
um refúgio, um pouco de sangue, 
outro tanto de mel: seus olhos 
luminosos e seu sorriso
carinhoso, apenas
betume e breu.

O cimento 
de minhas pálpebras
resolve as distâncias e as ausências
abarbando espaço e tempo num piscar de olhos.
Tudo é palco, por isso convém calar, fazer
um silêncio de vidro, e guardá-lo 
à sombra de um martelo.

A hora certa 
espera que haja carne e tempo
sob o manto da vontade, logo ali 
onde as verdades - e as vaidades -
descansam quase intactos, 
resumidos a pequeninas 
resmas de luz 
e escuridão.

Terceiro sinal: sala vazia.

A cena é recorrente -
jamais estamos sozinhos:
ao mirar, mesmo de soslaio, 
um ponto escuro qualquer na tela
entre as cortinas que vão se abrindo
a treva silente (pulsante) sempre 
olha de volta, sangrando, 
sorrindo.

sábado, 24 de outubro de 2015

MALDITO




Vamos festejar
os contratos não celebrados,
os heróis desacreditados, 
os vilões incompreendidos,
os bandidos acovardados,
os prudentes que estão falidos,
os cautelosos que foram pegos,
os amantes sem brilho nos olhos,
os amigos que não abraçam,
os padrinhos que não cuidam,
os pais que não amam,
os vivos que não morrem, 
os mortos que não descansam,
os pregos sem cabeça,
as tranças sem laço de fita,
os ritos sem compostura,
as missas sem fiéis,
os anéis sem dedos,
os brinquedos sem crianças,
os infantes sem inocência,
os irmãos sem fraternidade,
os palhaços sem graça,
os leões sem juba,
os crocodilos sem dentes,
os tubarões que se afogam,
os crentes que não oram, 
os cientistas delirantes,
os reis que imploram,
os juízes que não decidem,
as leis que não vigem,
os vigilantes que não enxergam,
os cobertores que não cobrem,
os cúmplices que não acobertam,
as mães que não se afligem,
os covardes que não fogem,
os tempos que não urgem,
os monstros que não rugem,
os ventos que não sopram,
os incêndios que não arrasam,
as casas que não protegem,
as primaveras sem flores,
os amores sem dor,
o labor sem cansaço,
o braço sem força,
o poço sem água,
a mágoa sem paixão,
o sim sem um não,
a mocinha sem um vilão,
os santos sem tentações,
as ações sem consequência,
as cobras sem veneno,
as águias sem penas,
e os poemas que não alumbram
o que dentro de nós é treva,
pó, deserto, silêncio
e sombra.

[Maldito, poeta, 
serás entre os seus.]

terça-feira, 13 de outubro de 2015

O LOBO


O lobo
respira suave
atrás da porta.

As unhas guardadas
na almofada de pelúcia
esperam, esperam.

A fera
que ainda não vejo
não tem pressa.

Por uma fresta
vaza a luz negra
daqueles olhinhos 
bonitos, pretos.

De repente,
um trovão, um murro,
um grito, um uivo,
uma baforada.

Meu amor 
abre a porta, 
pega minha mão:
sua presença 
me aquece.

Meu amor
abre a porta,
pega minha mão
e o lobo, esperto,
desaparece.

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

AHAB CANTA PARA A BALEIA BRANCA




A correnteza fere
o leito pardacento da lagoa.
O silêncio corre entre pedregulhos,
arrastando os trilhos da vontade,
trazendo no arrasto da manhã
cristais de conformação.

A lama pegajosa,
o arame, os cacos de vidro,
os casacos de lã, os anéis de vime,
as alianças de ouro (de tolo), os rolos
de fita crepe, as capas de cetim, o lume
dos meus olhos, as adagas e punhais 
perdidos, tudo é depositado 
na escuridão do espelho 
d'água.

As nódoas coloridas
refletem sentenças luminosas
no fluido fosco da líquida mortalha:
dias idos e tempos vindouros parecem
pedrinhas roladas, bonitas e sujas
como caramujinhos guardados
no fundo falso da minha 
calma.

Conto moedas,
escrevo poemas, coço a cabeça,
peço perdão, desejo bom dia, licença
senhor, licença senhora, reforço a moldura
dos bons hábitos, e dos maus também.
A lua enorme, o sol brincante,
o pássaro que voou, tudo
é motivo de alegria
e desespero.

Uma palmeira
balança os cabelos verdes
provando o gosto do vento que a machuca.
Os ipês amarelos definharam, desapareceram.
É primavera na prisão. Deixo que espalhem 
flores de sal sobre minhas feridas. 
A vida é boa,
afinal.

No meio de tanta beleza, 
não me encontro, mas sei que estou lá.
Meus espelhos se partiram antes, além-mar.
As naus, nuas, dançam. São baleias brancas, enormes, 
que ameaçam com carinho, e ensinam que cantar
não é preciso, mas é precioso 
o nosso cantar.

Repito,
é bom e útil repetir
porque assim me ensinou o mar.
As ondas repetem, repetem, refletem.
Que o poema, no escuro repita,
reflita. Cantar não é preciso,
mas é precioso, é precioso
o nosso cantar.

terça-feira, 6 de outubro de 2015

F(r)ESTA




Sobre a curva do lábio 
a fenda d'uma aurora.

A trave que segura 
teu riso de repente desaba. 

Cai.
Vai longe a lua, 

água turva deitada 
no caminho.

Há música
onde os brutos gritam.

Com o dedo anelar
risca um poema

no ar, na tarde
que te olha de joelhos.

De azul, fez-se vermelho
o olho vazado do firmamento.

És veloz, mas
morres de tédio.

Se pudesse, eu diria
em teus ouvidos caolhos

que invejo
tuas mãos cegas

tateando vias
tortas em minha escrita.

Gárrulas, garranchos.
Desce o pano,

mas um gancho
retém o poente, lindo.

Ainda é noite
sobre o oceano.

Finda
a dor, o que resta?

Um beijo 
na testa, um aceno

um rasgo
na jugular?

Julgo saber
menos que o pó

dos teus artelhos.
Tudo é comédia.

Uma boca desdentada
desdenha desfechos possíveis.

Reconheço
que por uma fresta

podemos escapar,
sobreviver, vencer.

Desço
à primeira esperança

sabendo que viver
é um enorme

baile de máscaras,
mas não uma festa.

Dai-me forças,
peço à moça que dorme

coçando feridas
imaginárias, dessas

que doem mais
quando amanhece.

Tudo é comédia.
Todo abismo

merece 
um sorriso.

És veloz, mas
morres de tédio:

teu destino
é terrível, mas

como é linda
a tua tragédia!





segunda-feira, 5 de outubro de 2015

SOBRE AS ÁGUAS



Algo
de mim na alga
que se deita sobre a água
afaga a maré que vaza
sem prazo.

O anzol
procura entre os sargaços
a carne, o cerne do peixe
que só por causa
do cansaço

do pescador
se deixa levar, fisgado,
mas não morto, o peito
rasgado de alegria
porque vai matar
em breve

a fome
de quem quer
que o leve embora
porque agora o peixe
é quem nos 
consome.

Alguma poesia
sobra, soçobra na alga
que devagar se deita e afaga
a pele de prata deste 
que morre:

correm 
as águas, morrem
os homens, e o espírito
de deus bóia sobre
as mágoas.

Reza a lenda
que é o sal da terra
que tempera os mares
e é o pó das montanhas
que tempera 
os ares.

Assim também 
é o sal da carne de quem 
morde os anzóis que dá sentido 
e sabor à carne 
que o tempo
rói.

O poeta 
tempera o cerne
de quem o consome
porque todos os pescadores
sabem que é o peixe 
quem come 
o homem.

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

ÍCARO ENTRE OS ESCOMBROS

Não escrevi o poema 
que no seio da madrugada crepita
debaixo de lençóis salpicados 
de estrelas de suor.

Não senhor, não escrevi 
sobre o homem negro gigante
cujo tempo roeu, acinzentou, perolou 
de brancas nuvens, depositando 
o calcário das horinhas banais 
desta vida nos cantinhos 
onde não se percebe, 
com sorte, 
a morte.

Não escrevi o verso triste 
nem a epopéia de festivas derrotas 
deste homem cuja presença é o sedimento 
paciente arrastado pela chuva e que na torrente 
se desfaz sem culpa nem mágoa
vertendo a si mesmo em águas 
misteriosas.

Não, o poema 
não chegou em tempo 
de colher o rosto flácido 
entre as mãos de um herói 
descrente, mas 
obstinado.

O meu poema 
crepita sem força, 
mas invencível no seio 
de uma noite 
calada.

Os tremores herdados, 
plantados em meus gametas
desfolham-se num gozo perverso
desperdiçado no gesto da pena breve
que risca em rubras tintas a sua prosa
mas nunca, nunca, nunca mais 
um verso.

No pêndulo afiado 
que trago sobre minha cabeça
brilha a gênese da minha extinção:
todo abismo merece um sorriso, precioso,
preciso, lançado à flor do vento 
com desdém e paixão.

Não escrevi o poema,
que desvendará o teu nome 
para a posteridade,
meu pai.

Estamos agora 
tão perto dele - o poema -
que já nem precisamos contá-lo.

A alvorada se aproxima. 
Veja como é linda e terrível 
a luz que se arrasta, pesada, 
por cima das encostas fustigadas 
pelos incêndios e maremotos 
comuns da nossa vida.

As rimas 
de um poema enorme
dormem num canto, numa gaveta,
e serão mastigadas em tempo breve
pelas traças, pelos destroços,
por essas ruínas que hoje 
te devoram e me 
esperam.

Não escreverei 
este poema. Minha voz
é demais, e o verso pede pouco.

Que minhas palavras 
se guardem em si mesmas, silenciosas 
como um vulcão adormecido, e tenham 
a paciência das flores nascidas 
no inverno.

Meus cadernos de menino
se perderam. Mas, em algum lugar 
um herói nascerá. 

N'algum momento 
- passado ou futuro, não importa - 
um homem enorme virá e me fará dormir 
o primeiro e eterno sono tranquilo, 
que me faz tanto sentido agora 
nessa noite longa 
e turbulenta.

Não 
escrevi o poema. 
Não o escreverei, 
ainda.

Na noite imensa
que já termina, as rimas crepitam 
como a luz dourada do sol fervendo 
o sal do mar de versos que a gente não diz 
na hora primeira - ou derradeira - 
em que enfim nos encontramos 
com nosso reflexo, 
perplexo.

Um herói, 
um gigante de cera
derrete-se com calma
sob a luz de uma alvorada 
veloz.

Ícaro 
entre os escombros
desdenha e rí do próprio
tombo.

Percebo 
o brilho dos seus olhos
no pêndulo afiado desta hora
que sobre minha cabeça
balança.

O passado 
olha para frente
mirando miragens 
no espelho.

Aquele homem, 
negro, enorme, agora é a sombra 
compacta e branca que numa gaveta 
ou em meus gametas
descansa.

Versar 
já não vale à pena.
Deixemos descansar 
nessa esplêndida e frágil paz
os heróis ignorados pelos nossos 
melhores (ou piores) 
poemas.

terça-feira, 29 de setembro de 2015

UMA FOTO EM MARTE




Esperemos.

Brumas.
Pó, fumaça e fuligem.
Passa uma nuvem,
a foto se desfoca.
Ali acontece
um milagre.

Talvez
uma lua vermelha,
um eclipse, um enigma,
o diafragma da máquina

engasgando diante disto:
o impossível, justo
aqui, agora, 
perdido.

Talvez
a auréola do seio
esquerdo da Madonna,
o brinco de prata pendente
na orelha direita de Santo
Agostinho, o próprio.

Talvez
um habitante de Marte
tomando Coca-Cola, ou ela,
a musa impassível, sorrindo,
gargalhando num vibrato
inaudível.

Talvez
o próprio Criador,
ou um criado seu, mandado
especialmente neste momento
para nos contar as velhas
novidades.

Esperamos.

Brumas.
Pó, fumaça e fuligem.
Passou uma nuvem
e roubou-nos a foto.
Fora de foco, tudo 
pode ser um
milagre.

segunda-feira, 22 de junho de 2015

NÃO NOS TOCAMOS




Não nos tocamos.
Houvesse o momento,
o ensejo, ainda assim, não

vibraria alto e claro como os sinos
que redobram quando nossos olhos se encontram,
faíscam, esplendem, e depois se apagam

sob os clarins
de uma paz magoada
como um amar sem querer.

Não nos tocamos,
é preciso repetir
para crer.

A boca breve
negou seu beijo
com o vagar de quem nega

aceitando, pedindo, o peito
arfante como quem se arrepende
de um crime perfeito.

Senti o gosto do seu gesto, apenas ensaiado.
Mas o arco da vontade não se ergueu
sobre a minha silhueta.

O facho
da mão que se levantou
no pensamento

não brilhou sobre a minha carne,
anoitecida, parada, inerte, imóvel,
presa à realidade.

A pele,
contra minha pele,
um ectoplasma.

O hálito como um vento matutino
roçando sobre as campinas invernadas
da minha vontade.

A sombra do seio
como uma adaga a apontar
gentilmente, como quem ameaça.

O perfume da voz
deslizando seu sabor metálico
de maçã-verde mordida na véspera.

As coxas tectônicas sobre as minhas coxas,
de leve, como as forças ocultas que devagar
fazem rolar os terremotos.

Os dedos como labaredas fustigando os pêlos
de minha barba, como as foices que desafiam
a força verde dos bambuzais.
Aquela manhã irrompeu sobre o mar
suas ogivas azuis implodindo os deliciosos
temores da madrugada.

Mil alvoradas não seriam suficientes
para apagar o que estava prestes
a desacontecer.

O arpejo furtivo deste poema
não faz jus à força daquele contrato:
amor sem desejo, toque sem tato.

Diz a lenda que numa certa catedral de carne e sonho
redobram mil sinos quando estes olhos se encontram,
faíscam, esplendem, e depois se apagam

sob os clarins
de uma paz tão magoada
quanto um amar sem querer.

Não nos tocamos.
Jamais nos tocaremos.
É preciso repetir para crer.

GUERRA E PAZ






Corpo,
meu querido fardo,
tens sido infiel companheiro
já faz mais mais de trinta anos
e ainda não nos entendemos.

Tuas curvas me iludem,
teus maciços vão se esfarelando no vão das horas
como as cordilheiras que se desfazem em pó
ao sabor do vento de qualquer monção.

Sei que erramos o caminho
mas só por isso encontramos contento
pedindo paz, pedindo guerra,
pedindo nuvem, pedindo terra.

Corpo
amado amigo e carrasco
tens o peso exato das minhas vontades
e a leveza paquidérmica de todas verdades.

Não me deixes ainda,
pois estou ereto, tranquilamente alerta,
provando, tateando partes recém-descobertas
do meu tu-espelho, do nosso eu-poeta.

Teus sinuosos engenhos
jamais foram menos pungentes que o restante
de vida que me sobra em cada sonho não sonhado:
és ao mesmo tempo porto e navio naufragado.

Corpo, que de outros corpos fartou-se,
perdeu-se na doce ausência de quem está mas não é.
Entre orvalho e trovão, sei que és chuva:
corre deitado e cai de pé.

No turbilhão da vida
seu tempo medido em ânforas de carbono animal
desenhou destinos variados, desdenhou recados
dados por deuses tolos e demônios sem pecado.

Logo chegaremos numa esquina qualquer
onde quiçá a morte, ou quem sabe outra sorte
nos colocará na gostosa presença da extinção
disfarçada num beijo de mulher, ou coisa que o valha,
pois o corpo só descansa na batalha.

Assim, no fim de tudo
saberei recomeçar, (?) aceitar o divino convite
para não ser mais corpo, (?) como faz a cigarra
que explode em mil cores (casulo-corpo-segredo)
para a incerta renovação do eu, mas não do ego?

Difícil saber, pois o saber pertence
à mente, não à alma, muito menos ao corpo.
A ele cabe apenas o sentido imediato de se crer vivo ou morto.
Enfim, a ele - o corpo - cabe ser, ao mesmo tempo,
refúgio e degredo.

No corpo (nosso, ou do outro)
jazem todas as nossas certezas,
e fatalmente os nossos medos.

Todo corpo é uma guerra
e é somente nela que podemos
ter sossego.

domingo, 14 de junho de 2015

UMA PENA




[Amor,
olha ali uma pena,
que pena...]

Olha o teu pássaro, 
este passarinho muito seu, muito livre, liberto
pela esperta magia da sorte, da morte, da vida
ida, vivida, olha, mira, esse teu pássaro bonito, aflito,
o teu passarinho, que não está mais lá, mas dança, e descança,
e alça voos maiores, que teus olhares já não alcançam, amor, meu
amor, olha ali o teu pássaro, o teu passarinho, que veio sozinho deixar
uma pena, outra pena, muitas penas, pra você, amor, nosso amor,
neste contratempo, vão, tempo que é onda (vai, vem, sonda,
perde, acha, mira, reencontra) e é teu, teu fado, enfado,
recado, mensagem, de quem resiste, existe ainda
no quando-sem-onde, nesse onde-sem-quando
nós, só nós sabemos, existe a pena,
a pena apenas, essa única pena
paga nas vagas desse
[ou de outros, tantos]
poemas.

terça-feira, 12 de maio de 2015

PROVISÓRIO



Meu tempo é agora,
mas, por enquanto, não hoje.
O minuto seguinte ainda está longe
e queima como uma promessa desfeita:
viver urge, num vagar que nos causa vertigem
enquanto as cinzas caem, depositadas mansamente
nas ânforas de tempo que os deuses, com seus clarins,
seus flautins, suas trincas de oboés, seu violão, seu tambor, 
concedem a quem tem pressa de ser infinito, ser maior
que aquele minuto que vem vindo de longe
dizendo que viver urge, e nosso tempo
é agora, mesmo que não seja
hoje.

quarta-feira, 6 de maio de 2015

OS PÉS DA SEREIA



Fazer do mar
a cama que transborda,
o ânimo, o vento certo,
o aperto de mão,
o hálito de bom
dia e adeus.

Canto. Manto.
Pranto e chão.

Paisagem
de azul cobalto
e pedraria impura,
falso ouro.

No olhar
a teia dos dias idos
e dos vindouros.

O ouro, repito,
o bonito ouro que cada
folha nova não fixa em vida
mas, por sorte, volta
a fixar na morte.

Armistício.

Entrego meus tesouros
por memórias de bem-querer.

Ser
ou não ser?

Mesmo que a lua
- minha irmã - não volte,
meus astrolábios cantarão
as notas possíveis
e as outras
também.

Há um norte
para onde ir, mas
não ainda, não hoje.

Hoje quero 
entreter os marinheiros
com a sombra dos meus seios
e a curva das minhas coxas
no entardecer, quando
não se vêem

as penhas,
e os engenhos fatais
guardados na ponta colorida
dos corais.

Navegar. Preciso me entender.

Saberei
respirar na água?

Guardo
sorrisos magoados
em relicários de laca.

Tão distante
de ser sereia ou talvez
já transfigurada na criatura
que elabora o canto mais bonito
- som de cristal quebrado nas poças
da retina - como quem implora

ao mundo que não ouça
esse riso-lamento, e dança
com sua cauda equilibrista
cabelo de ondas negras
e olhos de encanto.

É possível
perder-se na rotina
e se encontrar no labirinto.

É possível?

Abrir comportas,
deixar-se levar.
Lavar com palavra
os retalhos do existir.

No peito maremoto.
A inútil rosa-dos-ventos.
O astrolábio a beijar
mapas imaginários.

A cartografia do afeto.
O retrato sem luz.
A chaga aberta
mas sem pus.

Navegar:
moto-perpétuo.
Perder-se é preciso,
precioso.

Talvez eu tropece
e não saiba distinguir
a queda e o voo.

Mas posso, ainda,
fazer da alga desgarrada
- sargaço boiando na espuma -
talvez um poema
sol refletido na bruma
olho que flutua no quartzo
vidrado na tez da praia.

Meus cabelos
negros, negam nada ao vento.
Digo sim, mas com ressalvas:
por favor, me salve,
mas não agora.

No lugar da cauda,
pé humano: invencível
para todos os caminhos.

Já não será preciso
pôr pedras nos casacos.
Sou linda. Linda!

Foi o mar
quem disse.
Fosse outro
eu também creria.

Mas
a água salgada
não sacia.

Pele, pêlo,
escama, sou cada uma
de minhas vontades.

Maresia
e sangue agridoce.

Fosse
eu outra
estaria perdida.

Talvez eu seja
o peixe brilhante
que inaugura o arco-íris
na ponta de um anzol.

Talvez o sol
diga que sou a palmeira
que mira invencível
sobre as marés.

Canto: meu herói
há de vir.

O escudo, a espada
prateada e as telas
de arminho.

Meu herói
há de chegar sozinho
no devir do esperado dia

trazendo anel bonito
com a pedra mais vulgar
e num cálice que transborda
o sangue encarnado (não
azul) de suas veias.

Ele virá,
e eu, quase
inocente, fá-lo-ei beijar,
devagar, esses meus lindos
pés de sereia.