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quinta-feira, 1 de outubro de 2015

ÍCARO ENTRE OS ESCOMBROS

Não escrevi o poema 
que no seio da madrugada crepita
debaixo de lençóis salpicados 
de estrelas de suor.

Não senhor, não escrevi 
sobre o homem negro gigante
cujo tempo roeu, acinzentou, perolou 
de brancas nuvens, depositando 
o calcário das horinhas banais 
desta vida nos cantinhos 
onde não se percebe, 
com sorte, 
a morte.

Não escrevi o verso triste 
nem a epopéia de festivas derrotas 
deste homem cuja presença é o sedimento 
paciente arrastado pela chuva e que na torrente 
se desfaz sem culpa nem mágoa
vertendo a si mesmo em águas 
misteriosas.

Não, o poema 
não chegou em tempo 
de colher o rosto flácido 
entre as mãos de um herói 
descrente, mas 
obstinado.

O meu poema 
crepita sem força, 
mas invencível no seio 
de uma noite 
calada.

Os tremores herdados, 
plantados em meus gametas
desfolham-se num gozo perverso
desperdiçado no gesto da pena breve
que risca em rubras tintas a sua prosa
mas nunca, nunca, nunca mais 
um verso.

No pêndulo afiado 
que trago sobre minha cabeça
brilha a gênese da minha extinção:
todo abismo merece um sorriso, precioso,
preciso, lançado à flor do vento 
com desdém e paixão.

Não escrevi o poema,
que desvendará o teu nome 
para a posteridade,
meu pai.

Estamos agora 
tão perto dele - o poema -
que já nem precisamos contá-lo.

A alvorada se aproxima. 
Veja como é linda e terrível 
a luz que se arrasta, pesada, 
por cima das encostas fustigadas 
pelos incêndios e maremotos 
comuns da nossa vida.

As rimas 
de um poema enorme
dormem num canto, numa gaveta,
e serão mastigadas em tempo breve
pelas traças, pelos destroços,
por essas ruínas que hoje 
te devoram e me 
esperam.

Não escreverei 
este poema. Minha voz
é demais, e o verso pede pouco.

Que minhas palavras 
se guardem em si mesmas, silenciosas 
como um vulcão adormecido, e tenham 
a paciência das flores nascidas 
no inverno.

Meus cadernos de menino
se perderam. Mas, em algum lugar 
um herói nascerá. 

N'algum momento 
- passado ou futuro, não importa - 
um homem enorme virá e me fará dormir 
o primeiro e eterno sono tranquilo, 
que me faz tanto sentido agora 
nessa noite longa 
e turbulenta.

Não 
escrevi o poema. 
Não o escreverei, 
ainda.

Na noite imensa
que já termina, as rimas crepitam 
como a luz dourada do sol fervendo 
o sal do mar de versos que a gente não diz 
na hora primeira - ou derradeira - 
em que enfim nos encontramos 
com nosso reflexo, 
perplexo.

Um herói, 
um gigante de cera
derrete-se com calma
sob a luz de uma alvorada 
veloz.

Ícaro 
entre os escombros
desdenha e rí do próprio
tombo.

Percebo 
o brilho dos seus olhos
no pêndulo afiado desta hora
que sobre minha cabeça
balança.

O passado 
olha para frente
mirando miragens 
no espelho.

Aquele homem, 
negro, enorme, agora é a sombra 
compacta e branca que numa gaveta 
ou em meus gametas
descansa.

Versar 
já não vale à pena.
Deixemos descansar 
nessa esplêndida e frágil paz
os heróis ignorados pelos nossos 
melhores (ou piores) 
poemas.

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