Não escrevi o poema
que no seio da madrugada crepita
debaixo de lençóis salpicados
de estrelas de suor.
Não senhor, não escrevi
sobre o homem negro gigante
cujo tempo roeu, acinzentou, perolou
de brancas nuvens, depositando
o calcário das horinhas banais
desta vida nos cantinhos
onde não se percebe,
com sorte,
a morte.
Não escrevi o verso triste
nem a epopéia de festivas derrotas
deste homem cuja presença é o sedimento
paciente arrastado pela chuva e que na torrente
se desfaz sem culpa nem mágoa
vertendo a si mesmo em águas
misteriosas.
Não, o poema
não chegou em tempo
de colher o rosto flácido
entre as mãos de um herói
descrente, mas
obstinado.
O meu poema
crepita sem força,
mas invencível no seio
de uma noite
calada.
Os tremores herdados,
plantados em meus gametas
desfolham-se num gozo perverso
desperdiçado no gesto da pena breve
que risca em rubras tintas a sua prosa
mas nunca, nunca, nunca mais
um verso.
No pêndulo afiado
que trago sobre minha cabeça
brilha a gênese da minha extinção:
todo abismo merece um sorriso, precioso,
preciso, lançado à flor do vento
com desdém e paixão.
Não escrevi o poema,
que desvendará o teu nome
para a posteridade,
meu pai.
Estamos agora
tão perto dele - o poema -
que já nem precisamos contá-lo.
A alvorada se aproxima.
Veja como é linda e terrível
a luz que se arrasta, pesada,
por cima das encostas fustigadas
pelos incêndios e maremotos
comuns da nossa vida.
As rimas
de um poema enorme
dormem num canto, numa gaveta,
e serão mastigadas em tempo breve
pelas traças, pelos destroços,
por essas ruínas que hoje
te devoram e me
esperam.
Não escreverei
este poema. Minha voz
é demais, e o verso pede pouco.
Que minhas palavras
se guardem em si mesmas, silenciosas
como um vulcão adormecido, e tenham
a paciência das flores nascidas
no inverno.
Meus cadernos de menino
se perderam. Mas, em algum lugar
um herói nascerá.
N'algum momento
- passado ou futuro, não importa -
um homem enorme virá e me fará dormir
o primeiro e eterno sono tranquilo,
que me faz tanto sentido agora
nessa noite longa
e turbulenta.
Não
escrevi o poema.
Não o escreverei,
ainda.
Na noite imensa
que já termina, as rimas crepitam
como a luz dourada do sol fervendo
o sal do mar de versos que a gente não diz
na hora primeira - ou derradeira -
em que enfim nos encontramos
com nosso reflexo,
perplexo.
Um herói,
um gigante de cera
derrete-se com calma
sob a luz de uma alvorada
veloz.
Ícaro
entre os escombros
desdenha e rí do próprio
tombo.
Percebo
o brilho dos seus olhos
no pêndulo afiado desta hora
que sobre minha cabeça
balança.
O passado
olha para frente
mirando miragens
no espelho.
Aquele homem,
negro, enorme, agora é a sombra
compacta e branca que numa gaveta
ou em meus gametas
descansa.
Versar
já não vale à pena.
Deixemos descansar
nessa esplêndida e frágil paz
os heróis ignorados pelos nossos
melhores (ou piores)
poemas.
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