A cena
é recorrente - um arpão
e seu ensejo: a ponta afiada
de um olhar percebido no arpejo frio
das retinas, tocaiando um alvo
que se afasta mas
não se move.
O metal da íris
embotado nas promessas
da paisagem, desfaz com calma a firmeza
das montanhas, os prédios desabam, as famílias,
minha família desintegra-se no vento como as plumas
de um dente-de-leão, o pão compartilhado
no passado fica embolorado como
o carinho que a vida prática
engoliu, apressado,
bruto.
Por trás das cortinas,
na algazarra contida de um entreato,
mocinhos e bandidos sentam à mesma mesa
e se refestelam, mastigam de boca aberta
e riem alto, os bigodes falsos caindo
por um canto do rosto, malditos
sejam, benditos
são.
Tento fazer
um poema: minha métrica
é um soluço, o pensamento claudica
e corre, as rimas sobem escadas e caem
em açapões, reaparecem tímidas, sorriem com
cara de choro, tentam novamente, e se estatelam de novo,
dão uma cambalhota, fazem uma mesura para a plateia
e seguem para a coxia fingindo que triunfaram,
que são reais os aplausos da claque
num alto-falante quebrado.
O show tem que continuar.
Meu semblante de vilão
é refletido nos telões da metrópole:
falam de mim, sabem de mim, meu sangue
escorre na praça para o espetáculo dos pios,
um rio se forma, mas logo é canalizado,
domado, fadado ao subterrâneo
onde habito feliz, mas
pouco animado.
Temos champagne
na cadeia, mas falta pão.
Recusei pisar
a cabeça daquela serpente,
chamei-a irmã, deixei que se aninhasse
entre os meus despojos, ofereci a ela
um refúgio, um pouco de sangue,
outro tanto de mel: seus olhos
luminosos e seu sorriso
carinhoso, apenas
betume e breu.
O cimento
de minhas pálpebras
resolve as distâncias e as ausências
abarbando espaço e tempo num piscar de olhos.
Tudo é palco, por isso convém calar, fazer
um silêncio de vidro, e guardá-lo
à sombra de um martelo.
A hora certa
espera que haja carne e tempo
sob o manto da vontade, logo ali
onde as verdades - e as vaidades -
descansam quase intactos,
resumidos a pequeninas
resmas de luz
e escuridão.
Terceiro sinal: sala vazia.
A cena é recorrente -
jamais estamos sozinhos:
ao mirar, mesmo de soslaio,
um ponto escuro qualquer na tela
entre as cortinas que vão se abrindo
a treva silente (pulsante) sempre
olha de volta, sangrando,
sorrindo.
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