Ask Google Guru:

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

SALA ESCURA




A cena 
é recorrente - um arpão 
e seu ensejo: a ponta afiada 
de um olhar percebido no arpejo frio 
das retinas, tocaiando um alvo 
que se afasta mas 
não se move.

O metal da íris
embotado nas promessas 
da paisagem, desfaz com calma a firmeza 
das montanhas, os prédios desabam, as famílias, 
minha família desintegra-se no vento como as plumas
de um dente-de-leão, o pão compartilhado
no passado fica embolorado como
o carinho que a vida prática
engoliu, apressado,
bruto.

Por trás das cortinas,
na algazarra contida de um entreato,
mocinhos e bandidos sentam à mesma mesa
e se refestelam, mastigam de boca aberta
e riem alto, os bigodes falsos caindo
por um canto do rosto, malditos
sejam, benditos 
são.

Tento fazer 
um poema: minha métrica
é um soluço, o pensamento claudica
e corre, as rimas sobem escadas e caem 
em açapões, reaparecem tímidas, sorriem com
cara de choro, tentam novamente, e se estatelam de novo, 
dão uma cambalhota, fazem uma mesura para a plateia 
e seguem para a coxia fingindo que triunfaram, 
que são reais os aplausos da claque
num alto-falante quebrado.

O show tem que continuar.

Meu semblante de vilão
é refletido nos telões da metrópole:
falam de mim, sabem de mim, meu sangue
escorre na praça para o espetáculo dos pios,
um rio se forma, mas logo é canalizado,
domado, fadado ao subterrâneo
onde habito feliz, mas
pouco animado.

Temos champagne 
na cadeia, mas falta pão.

Recusei pisar
a cabeça daquela serpente,
chamei-a irmã, deixei que se aninhasse
entre os meus despojos, ofereci a ela
um refúgio, um pouco de sangue, 
outro tanto de mel: seus olhos 
luminosos e seu sorriso
carinhoso, apenas
betume e breu.

O cimento 
de minhas pálpebras
resolve as distâncias e as ausências
abarbando espaço e tempo num piscar de olhos.
Tudo é palco, por isso convém calar, fazer
um silêncio de vidro, e guardá-lo 
à sombra de um martelo.

A hora certa 
espera que haja carne e tempo
sob o manto da vontade, logo ali 
onde as verdades - e as vaidades -
descansam quase intactos, 
resumidos a pequeninas 
resmas de luz 
e escuridão.

Terceiro sinal: sala vazia.

A cena é recorrente -
jamais estamos sozinhos:
ao mirar, mesmo de soslaio, 
um ponto escuro qualquer na tela
entre as cortinas que vão se abrindo
a treva silente (pulsante) sempre 
olha de volta, sangrando, 
sorrindo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário