Ask Google Guru:

quinta-feira, 30 de abril de 2015

ONLINE





Hoje 
todos os meus temores matutinos 
chegaram lentamente, sorrateiros, 

procurando plugs na base do meu cerebelo, 
na linha entre o pescoço e os cabelos, 
onde Javé beijou e Shiva encostou a orelha esquerda 

para ouvir os estalos da máquina pós-humana, 
milagre maior, inesperada forma de pôr norma ao caos, 
fôrma de canoa para todos os gravetos e paus. 

Versos de madeira, 
à formão e fórceps 
viram naus.

Navego. 

O oceano não existe, mas está lá. 
Estamos num beco. Pontos de fuga 
são tomadas na parede. 
A rede não quer peixes, 
quer gente. 

Navego. 

O poema é apenas pretexto. 
O hiperlink, o supertexto, o ultracontexto, nada faz sentido. 
Mas o que o texto traz, não se pode negar: 
biomáquinas choram, sentem mais que nós. 

A casca grossa, 
o exoesqueleto todo tatuado de sonetos, 
o poeta jaz no disco rígido de coração mole, 
a morte engole em seco, viver já não é uma dádiva, 
senão um trabalho, um continuum de cabos e senhas.

Deus, 
esta grande consciência armazenada nas nuvens.

Nós, 
filhos e espírito santificado, seremos engendrados 
por proto-genes em berços de realidade aumentada.

Como são lindos seus embriões
equipados com chips de memória eterna,
mas sem força nos punhos
e sem comichão nas pernas.

Quem 
olhará por sobre os muros?
Quem 
derrubará o firewall do status quo?

Robôs com lágrimas nos olhos sorriem,
observando Sirius a olho nu, no horizonte.
Robôs com mãos tenras e pele morena sambam nas feiras livres,
belos filhos de Prometheus, torpes afilhados de Creonte.

Mas 
haverá sempre uma saída, 
mesmo que inesperada.

No palco onde as cortinas jamais fecham,
a platéia e os atores aguardam com aflição
por qualquer luz queimada.

(O show tem que continuar.)

Trans-humano, pós-biológico,
é lógico navegar neste pós-eu,
pós-nós, além-mar.

Navegar é preciso.
Viver, precioso.

O espetáculo da existência 
é um oceano lotado de sereias biônicas, peixes eletrônicos, 
onde planta e plâncton alimentam homem e máquina, que se afogam, 
mas não morrem, e soçobram inúteis nas praias.

Vida eterna. 

Os ossos quebrados se trocam.
Os órgãos falidos se regeneram. 

Já não nos importamos com os aplausos,
nem com as vaias.

Vida eterna.
Até que a conexão caia.

PRETO-E-BRANCO



Na desiluminura de mil sóis poentes
desfloram-se retinas e palatos: o som
decide ser cor, e a cor decide ser fato.

São manhãs de lua e noites de sol.
Os arrebóis sem cor, ainda assim, gritam
sons de arco-íris, auroras boreais, supernovas.

Mas note, mire, veja
o quanto a palavra pinta
só com palavra este seu retrato.

Palavra sobre papel.
Palavra sobre a tela vazia.
E só.

Palavra após palavra.
Miríades delas, terríveis e belas,
como nós, estrelas em pó.

De repente o poema brota
nessas refazendas de palavras inventadas
por uma esperança que na página franca se aninha.

Poesia é paisagem:
fotografia em preto e branco
com um universo de cores nas entrelinhas.

quarta-feira, 22 de abril de 2015

PRIMAVERA







Observo pássaros invisíveis
afogados na prata líquida dos teus olhos.

Desço ao fundo de mim e espero
que chova punhais sobre nós.

Fluo
como um rio subterrâneo.

Os sedimentos
brilham dentro da ampulheta.

Poeta algum
poderia pensar versos mais tristes

que estes que não escrevo
agora que aprendi um riso

protocolar, bonito
como um contrato assinado,

moeda falsa cunhada
em ouro verdadeiro.

Há um cansaço imenso
em tudo o que não é rotina:

uma neblina
espêssa cobre os cantos

da tela. A dicção dos pássaros
imita sinos quebrados, enterrados

em florestas de vidro,
véus de pedra, orgias, missas,

lembranças, engenhos de sonho,
mágoa, cal, fel, bile, húmus, a baba fina

dos santos de barro
e dos anjos no espelho.

Ao meio-dia a lua ainda
está no céu, carimbo de breu
no firmamento.

Esses dias
que já nascem podres
ainda podem ser fantásticos.

Ânforas e odres
estarão quase cheios,
já estando quase vazios.

Ainda há tempo.
Manhãs vão se despetalando
numa ciranda que não cessa:

são rosas cancerosas, sujando
as horas com sua maravilhosa
e terrível sentença.

Teço uma prece
com a pressa pacífica
de quem sangra.

É tempo
de fruta madura
e eu estou em flor.

Senhor,
a ti eu rogo:
colha-me logo.

terça-feira, 21 de abril de 2015

ROTINA





Estrelas mortas brilham sem cessar.
Noites inventadas rolam no teatro do dia.

A salmodia dos pássaros envolve a manhã
com o celofane rosa-azulado da alvorada.

O mar - chumbo derretido - ronrona baixinho.
Oceanos dormem, não é necessário

marulhar demais, porque silêncios clamam por silêncios,
e fazem, sem pressa, uma sinfonia delicadamente terrível.

É preciso cantar. 
E cantar, e cantar, e cantar.

O tempo se assenta em finas camadas, inaugurando
todos os abismos guardados nos relicários da rotina.

A tez, os pelos, os cheiros da madrugada.
Tudo é muito perfeito, e por isso precário.

Aceitamos açoites imaginários
enquanto chicotes reais rodopiam no ar.

Queremos grunhir, cantar, 
sorrir, sofrer, gozar.

O versos se repetem,
vida ao avesso.

[Poesia é asa
e topeço.]

Tragam violões, 
mas não os toquem.

Há tanto o que dizer,
que é melhor calar.

Tudo o que não for poeira 
de estrada, é mar.

Sejamos fortes, 
sigamos o mestre do canto.

Há um sorriso guardado
em seu lamento.

Tudo é bom, e mal
percebemos isso.

No meio do lodo
é que nasce a flor-de-lis.

Note, a voz de um deus inexistente 
preenche todos os espaços

e suas cantigas vem como ondas, e mais
ondas, e mais ondas de mágoa clara e limpa.

Tudo é bom, e mal
percebemos isso.

E só o poema poderá achar fácil
o que com dificuldade a vida garimpa.

terça-feira, 14 de abril de 2015

PREGÃO





Não vou cantar aos meus irmãos
porque já amanheceu nos trópicos sujos e dourados
e nos planaltos boreais chove estrelas de sal na noite branca.

Não vou cantar aos meus irmãos
porque há operários humanos engendrando o dia
enquanto a alma barulhenta das máquinas descansa.

Não vou cantar aos meus irmãos
porque minhas musas perderam a cor, a doçura,
e o canto das sereias já não é novidade: pregão de putas tristes.

Não vou cantar aos meus irmãos
porque é preciso cavar trincheiras, erguer muros,
e temer com fé e força um inimigo que não existe.

Não vou cantar aos meus irmãos
porque perdi muito tempo ganhando a vida
enquanto as flores erguiam catedrais de poesia, em vão.

Não vou cantar aos meus irmãos
porque há sementes de metal espalhadas nos pomares
onde festejamos porque hoje sobra o vinho, amanhã faltará o pão.

Não vou cantar aos meus irmãos
porque hoje não vi o mar imenso ronronar ao sol
espraiando seu dorso azul que o horizonte devagar acaricia.

Não vou cantar aos meus irmãos
porque é preciso estar alerta, esperto, maneiro, malandro,
e de vez em quando lembrar que a vida liberta, mas o viver policia.

Não vou cantar aos meus irmãos
porque em todos os espelhos há estranhos mirando
os olhos negros que serviam de leito e abismo para os meus.

Não vou cantar aos meus irmãos
porque nas assembleias dos grandes poetas
já não se encontram amantes, nem amados, só comerciantes, 
[valha-me deus!