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terça-feira, 15 de dezembro de 2015

MÁRMORE NEGRO




Reparo 
que há um veludo 
muito bem gasto no gesto comum
e que sobre o mármore negro do cotidiano
há pequenas manchas de contentamento 
e mágoa. 

Trago 
ânforas de cansaço
nas costas, espáduas, 
quadris, artelhos, espírito, 
e na alma. 

O tempo flui, pesado, 
mas veloz, com a calma 
nervosa dos que morrem aos poucos, 
escorrendo por caminhos tortuosos, 
por veias, vias rubras onde 
se guardam tesouros 
ignorados.

A gente sorri, diz 
bom dia e boa noite, pede 
desculpas, concede a bênção, 
dá licença, e sobrevive, por que é preciso 
[precioso] sobreviver, resistir, fingir que a carne 
entende todo fingimento, necessidade de estar 
em paz [no vácuo das bombas] enquanto 
tudo o que é sólido, eterno, desfaz-se 
graciosamente no ar, diante do vidro 
embaçado dos (nossos) 
olhos.

Há tempo
para pisar flores,
levantar a guarda, cultivar
amores vãos, cavar trincheiras,
palavrar poemas inúteis, como
todos hão de ser, sempre,
e sempre.

Reparo 
que há um veludo 
muito bem gasto no gesto comum
e que minhas unhas, desafiadas, arranham
o mármore negro do cotidiano, desenhando
este verso (talvez o derradeiro) que erra
tranquilo, em círculos de virtude
e vício.

Trago ainda
essas ânforas de cansaço
sobre as costas, espáduas, 
quadris, nos artelhos, 
no espírito, 
na alma. 

Estou bem.

A máquina do mundo 
mói os dias, mastiga as carnes,
e distribui acenos, desses 
que não sabemos se 
de chegada ou de 
adeus.

Há tempo
para pisar flores,
levantar a guarda, cultivar
amores vãos, cavar trincheiras,
palavrar poemas inúteis, como
todos hão de ser, sempre,
e sempre.

Amém.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

O ANJO DA ALVORADA



Uma fresta
reluz no céu coalhado
de estrelas.

Algumas são mais belas,
outras, quase apagadas,
são fim de festa.

Estamos quase acordados,
e quase amanhece: 
o arcanjo Miguel 

sonha conosco 
e molha a cama. 
Seu corpo têso, 

de barro e louça
quase quebra.
Ele chora? 

Fala com os peixes? 
É licor? Mel?
Breu de vela?

A moça na cama
não vê que a luz pinga
sobre ela.

Outros anjos,
outros homens
devem levantar-se

agora. Viver
é urgente, tarefa diária
para a qual não há protesto.

O anjo se esvai
na melodia da alvorada
dispensando seus amplexos.

Suas asas derretem? 
Ou ele sonha 
que tem sexo?

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

COROLAS




Na corola da manhã 
o azul ultramarino de ontem
escorre líquido por entre as montanhas.

Há paz e medo na íris embaçada
que vê outros olhares
alhures.

Dísticos se desencaixam 
com sôfrega beleza: os ritmos não rimam, 
os poemas são pomares de frutos roxos

que não justificam nem perdoam
o açúcar desperdiçado pelos sonhos
dos infantes.

Prossigo 
encarando minha finitude
como quem espera uma ave matutina

que vem de longe 
trinando seu canto de cristal quebrado, e pousa 
sóbria, antes do enquadramento perfeito da foto.

Minha palmeira invencível 
dorme, mas está atenta. Em seu sono os ventos 
passam alisando-lhe os cabelos que a noite pintou

com as mais bonitas chagas e broquéis
como quem salpica estrelas de fogo-fátuo
num céu nublado.

É preciso arar 
entre os versos que vigoram
para compreender que não há beleza neles

e ainda assim encher os olhos 
de águas claras, lavando o azulejo colorido 
das almas restantes desses delírios mais-que-perfeitos.

Não entender é essencial nessa hora.
Só com as mãos de quem ignora é possível reter
a paz que vigia de dentro desse turbilhão, e dormir

o sono dos bobos, 
com a firmeza rubra dos inconstantes.
Divago, cansado de estar certo em vão.

Errar por certos lugares 
tornou-se o pão de cada dia.
Há algo ameaçadoramente bom no horizonte, 

convém, por isso, quebrar as pernas 
de qualquer ave branca, e com isso fazer com que voe 
sem pouso e sem uso para o chão, faça tensa a pena leve,

e breve a cena imensa, 
desfazendo a aliança frágil e triste
entre o que é e o que deveria ser.

É possível 
que o tempo faça sentido
desfazendo meu corpo de areia 

como faz o vento soprando 
as dunas para onde não se pode vê-las,
grão a grão, para dentro do oceano.

Repito, é preciso quebrar as pernas
de qualquer esperança, qualquer pássaro alvo,
qualquer bicho alado que voe sobre nossa cabeça.

Sem chão, hão de voar melhor.
Como Ícaro entre os escombros, a memória
do voo será feliz como a memória do tombo.

Então, que as aves não pousem jamais, 
nem usem o horizonte como faz o poeta, 
que ara horas acesas enquanto sonha:

na corola da manhã 
o azul ultramarino de ontem
escorre líquido por entre as montanhas.