Toda multidão é um abismo,
um convite ao suicídio da privacidade, da calma.
Mas também é um maremoto, um turbilhão
onde o moto-perpétuo do coração
olha-se no espelho embaçado da alma.
Um bafo de vida no vidro,
e o vapor do amor faz aparecer a escrita oculta:
alguém passou os dedos na tua pele
e em segredo riscou um mapa do tesouro.
O que não se vê é sempre de ouro!
Porque ver a si mesmo ainda é pouco
perto da experiência de mirar-se na figura do 'outro'.
O semelhante, sempre dissonante,
nosso irmão, seja na cachaça ou seja no pão,
nem sempre é carne da nossa carne,
mas carrega uma semente comum no seu cerne,
em sigilosa angústia ou em barulhenta epifania
todos são iguais em suas secretas vilanias.
E enquanto isso Deus e o diabo jogam xadrez
pela alma e pelos corpos de todos, vivos ou mortos,
alinhados como formigas, laboriosas em sua marcha em fila,
cada uma ciente da sua ignorância, a bela bestialidade
da qual todo bom filósofo se jubila.
Ah, as delícias do não saber!
Todo homem não é uma ilha?
Somente os ignorantes podem versar sobre tudo:
no tumulto das vozes, sempre vai parecer mais inteligente
aquele que permanecer mudo!
- Marcelo Sousa, em "O Semeador de Abismos", 2011.