Todo dia é domingo?
Para que o seja, é preciso ter pai,
mãe, conta em banco, livro de poesia
do último e obscuro autor albanês, emprego
em repartição pública, bandeira pronta para passeata,
carro bom, lavado para carreata, tia que faz compota,
camisa branca, quadro na parede, cachorrinha
chamada Lulu que adore farinha láctea
e pão-de-ló, discos do Miles, e ser
funcionário do mês, ao menos
uma vez por ano.
É domingo novamente,
mas não de novo.
O tempo embaralha
meus atos de coragem,
tratos-falhos, o destino
das coisas feias e belas.
N'algum canto longe
do meu pranto descansam
minha mãe, meu pai e meu filho.
Já não tenho a sombra da sua umbrela
a garantir meu orgulho, minha exatidão
perante um mundo que gira, gira, gira
e não sai do lugar.
Minhas ventanelas
abrem-se para um sol
que machuca, antes de acariciar.
Prometem-me mortes lindas depois
desta morte, o que deve ser uma sorte
grande, o bilhete premiado
mas não desejado.
Poemas, poemas...bah!
São sempre os mesmos: asa
de vidro, de mariposa, de coisa
que só existe quando quer, jamais
quando pode.
É à sombra do machado
que insiste em nascer a flor
mais linda, a erva mais
perfumada.
Enquanto isso
pagam minha poesia
com um aplauso tímido,
não com pão, brioche,
por que isso não
pode.
Casa verso vai valendo
o fio de um bigode.
Segue a missa.
Mortos, ou jamais nascidos,
brilham escondidos na luz impávida
que trago por trás desses olhos ambarinos
embotados por tanto vagar pelas terríveis
maravilhas deste mundo.
Num piscar de asas
um tempo sem prazo escorre
entre os dedos de deus, suprema graça,
quando todos os trovões e relâmpagos se condensam
e a eternidade (mero detalhe) desfaz-se em paz,
em pó, em igrejas feitas de carne, osso
e solidão.
Apenas eu,
que ainda sou feio, finito,
e cansado, resisto.
Todos os sinos são
a promessa do som sobre
o ventre oco do cobre, repetindo na missa
o que um bicho -talvez alado- sonha dentro
de um poema, uma salmodia, ou um ovo:
é domingo, hoje é domingo
novamente, mas não
de novo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário