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quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

A MELHOR FLOR DOS PIORES TEMPOS





[ou... Cavando Abismos, Construindo Pontes]


Acostumei-me ao rebuscados meneios da poesia. Mal costume, devo dizer. Porque a cada dia que passa tenho que ser mais homem, mais humano, e subverter toda lira, e não pensar mais em ramos floridos bailando entre os dedos da brisa matutina, nem nas ondas de chumbo líquido que se descabelam ao encontrar a terra, bordando de brancas espumas os lábios do continente. Não, não cabe rimar. Contemplar a poesia não cabe, nessas horas de ferro e fogo que exigem da gente a palavra dura e a atitude medida dos homens de verdade.

Mas o que é ser um homem de verdade? Ser rude? Mentir? Acordar cedo e sair para a vida com a gravata apertada no colarinho, com o tempo nos estrangulando, com contas a pagar, com as mãos secas para machucar os outros, com o corpo esperando o sexo sem carinho, a agulha, o vício, a morte?

Será o tempo o nosso vilão? Será o tempo a mão esquerda de Deus? Será que existe um Deus? Ou será que cada homem cria um álibi chamado Deus para cuidar do episódio humano como quem vive a podar uma árvore que só queria florescer?

Há algum tempo não encontro refúgio nas palavras. Elas que me acolheram nas horas mais difíceis, hoje me fogem como cavalos selvagens, e são ariscas, brutas, e jogam poeira nos meus olhos e me fazem chorar um choro abafado e envergonhado. Homem não chora, menino!  E as palavras passam, cavalgam sem cuidado com as campinas floridas, e rima alguma me contempla, nem mesmo a mais dolorida. As palavras passam por meus olhos, mas por mais que eu as mire, não acredito mais na verdade dos seus nomes. Elas nascem de todos os lugares e de lugar nenhum; elas voam por todos os lados e se chocam contra o meu peito como aves cegas contra um rochedo à beira-mar. Como sorrir assim? Como cantar a paisagem se todas as janelas estão fechadas?

Tempo sem beijos. Tempo de apertos de mãos sem vontade. Tempo de dividir o cativeiro com o inimigo. E as palavras ao redor, paredes sujas, corredores escuros, os carinhos disfarçados de mal-querer, os maus-tratos adornados com fita cor-de-rosa e com cheiro de chocolate. É como se todos os ramos de flores escondessem venenos mortais, adagas, punhais. Onde foi que perdemos nossa delicadeza? Quando foi que amar ficou fora de moda? As pessoas caminham em círculos, mãos dadas com luvas cheias de espinhos.

Outro dia me encontrei olhando nos olhos de outra pessoa, e confesso que estremeci. Nos últimos anos chegar perto de qualquer ser humano era para mim como aproximar-se da beira de um abismo. Curiosidade, medo, náuseas, desconforto...  E por isso abracei as formas mais efêmeras de existência, e me tornei uma lenda pra mim mesmo. Mas de tempos em tempos eu me pego desafiando a perigosa distância da qual me fiz refém, e a despeito do perigo de perder-me nos abismos da alma alheia, deixo-me apaixonar pela mais banal da criaturas, por aquela que passa sem me notar, por aquela que sorri sem terceiras intenções (porque das segundas ninguém escapa) e que me estende a mão desnuda, sem as luvas cotidianas a que todos nos acostumamos a usar.

Esta criatura em construção sempre me surpreende com a força da sua poesia. Poesia que eu não acreditava existir mais! 

Engraçado como nosso pensamento caminha pelas mesmas trilhas, ás vezes ensolaradas, ás vezes obscuras. A vida continua dura, ríspida, mas há quem resista. Há quem resista!

Meus nós desataram-se há muito tempo, e nem lembro mais o que é ter um porto seguro, ou uma corda que me prenda a alguma coisa, alguém, algum lugar. Mas quanto mais eu conheci do mundo, mas percebi o quanto todos nós somos parecidos, as mesmas vontades, os mesmos pecados, as mesmas forças e fraquezas. Tanto que vejo gente por demais apegada ao carcomido mantra do "eu-meu-eu-meu" e não entendo como pode haver tantos cegos neste castelo em ruínas. 

Somos como pessoas que caminham no escuro, uma ao lado da outra, mas sem se ver, sem se tocar, e por isso seguindo sempre em frente, com uma imensa impressão de estar só. Faltaria só um gesto na direção oposta para que o milagre acontecesse, mas já é tarde para acreditar em milagres, e caminhar é preciso.

Mas um milagre pode acontecer, e que seja a poesia o seu veículo. Como uma criança deixa sua mão registrada no cimento fresco, sem saber que aquele toque ficará ali para sempre, assim quero ser, chegando de leve e arrebatando meu semelhante, como uma pena bonita e colorida que vem flutuando e nos toca o ombro, e a gente guarda com um carinho sem explicação, numa caixinha que talvez fique esquecida em alguma gaveta, lembrança única de que um dia nos apaixonamos por um pássaro que nem vimos nem ouvimos, pois passou voando veloz em direção ao seu destino de liberdade.

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