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domingo, 16 de novembro de 2014
ALVORADA
[prólogo]
Reinvento memórias recortadas de outros livros
que escrevi sob o gozo e a tortura
das horas mais simples.
É tudo verdade,
mas nem tudo aconteceu.
1.
É domingo novamente,
mas não de novo.
N'algum lugar descansam
meu pai e meu filho.
Apenas eu, que ainda sou finito,
e cansado, resisto.
Os sinos amplificam esta verdade:
é domingo novamente, mas não de novo.
2.
As notícias matutinas
decretaram o fim da rima rica.
Fica o sentimento de que acabou o pão,
mas o café não.
Entenda, a dissonância é intencional,
mas também inevitável.
Convém resguardar um minuto
e um torrão de açúcar.
3.
Não escrevi o poema
que no seio da madrugada crepita
debaixo de lençóis salpicados de estrelas de suor.
Não senhor, não escrevi sobre o negro gigante
que tempo roeu, acinzentou, perolou de brancas nuvens
depositando a mármore das horinhas banais desta vida
nos cantos escuros
onde não se percebe, com sorte,
a morte.
Não escrevi o verso triste
nem a epopéia deste homem
cujo sedimento paciente foi arrastado pela chuva
e que na torrente de desfez sem culpa nem mágoa
vertendo a si mesmo nas águas misteriosas
dos dias mais banais.
Não, o poema não chegou em tempo
de colher o rosto flácido entre as mãos
de um herói descrente, mas obstinado.
4.
O meu poema crepita sem força
no seio de uma noite calada.
Uma noite alada.
Os tremores herdados,
plantados em meus gametas
desfolham-se num gozo perverso
desperdiçado no gesto da pena breve
que risca em rubras tintas a sua prosa
mas nunca, nunca, nunca mais um verso.
No pêndulo afiado
que trago sobre minha cabeça
brilha a gênese da minha extinção:
todo abismo merece um sorriso, precioso,
lançado à flor do vento com desdém
e paixão.
5.
Não escrevi o poema,
que desvendará o teu nome
para a posteridade,
meu pai.
Estamos agora
tão perto dele - o poema -
que já nem precisamos contá-lo
aos que por nós passaram.
A alvorada se aproxima
sorrindo por cima das encostas fustigadas
pelos maravilhosamente (milagrosamente) comuns
incêndios e maremoros da nossa vida.
As rimas do poema que jamais será escrito
serão mastigadas pelos seres minúsculos
que minuciosamente te devoram
e me esperam.
6.
Não escreverei este poema.
Que minhas palavras se guardem em si mesmas
e tenham a paciência das flores nascidas no inverno.
Em algum lugar um herói nascerá.
N'algum momento - passado ou futuro,
não importa - um homem enorme virá
e me fará dormir o primeiro e eterno sono
tranquilo, que me faz tanto sentido agora
nessa noite longa e turbulenta.
7.
Não escrevi o poema.
Não o escreverei, ainda.
Na noite que já termina,
as rimas crepitam como a luz dourada do sol
fervendo o sal do mar de versos que a gente não diz
na hora primeira - ou derradeira -
em que enfim nos encontramos
com nosso reflexo, perplexo.
8.
Um herói,
um gigante de cera
derrete-se com calma
sob a luz de uma alvorada veloz.
Percebo o brilho dos seus olhos
no pêndulo afiado desta hora
que sobre minha cabeça
balança.
O tempo se contorce,
serpente emplumada que a si mesma consome
engolindo voraz a própria cauda.
O passado olha para frente
mirando miragens no espelho.
Aquele homem, negro,
enorme, dorme, e
agora é a sombra compacta e densa
que numa gaveta descansa.
Versar já não vale à pena.
Deixemos descansar (em paz?)
os heróis ignorados
pelos nossos melhores (ou piores) poemas.
[epílogo]
Faço inventários
de tudo o que está ausente.
Trago em mim oceanos
cujas marés foram calcinadas
pelo átimo apenas pressentido.
A história é breve,
o tempo não.
[post-scriptum]
Aprendi novos acenos
com as asas das gaivotas.
(Todo abismo
merece um sorriso.
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