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domingo, 29 de março de 2015

VOO



Certo de que pão é pão
e pedra também, segui adiante
galopando os anos como quem
atravessa um planalto no escuro
fazendo pazes com inimigos 
presentes e futuros.

Desfiei rosários coloridos
enquanto ensaiava morrer
cruzando alvoradas em vão
pois havia sempre a promessa
de um sorriso à beira de qualquer
abismo, ou colo de mulher.

Era preciso revisitar
os mesmos versos para abrir
caminhos diferentes, como faz
o verme voraz na carne viva do animal
que morre aos poucos, mas pulsa ainda
nele algo que talvez você, inadvertidamente,
chamará esperança, asa quebrada, única,
esquerda, pendente, inútil ao voo, mas não
ao ofício imprescindível de sonhar.

Ao contrário do que muitos pensam
o fim não é um alçapão, um poço sombrio,
nem é fria a nossa extinção. Pelo vão
desta porta vejo - imagino - um sol
abrasador, porque a luz dourada
chama com labaredas que dançam
sinuosas como espadas
sacerdotais.

O que mais
haveria por trás dessa porta,
senão outras, milhares, num corredor
estreito, que não termina jamais?

O poema.
No fim, ao cabo,
ao longo, e sempre.
Mas
não importa:
abertas ou fechadas
creio que essas portas
já não levarão mais a nada.

O que digo?
Nenhum vinho acolherá
o torpor dessa noite em que estou
só, com minha sobriedade.

Há musgo entre os ossos
das figuras desenhadas
na parede.

Por baixo da pele das tintas
o concreto armado sonha ser nuvem
e todo edifício, por isso, pode um dia
desabar, vir abaixo, virar
pó, luz, névoa, mar.

Ontem mesmo
eu tinha vinte e três anos de idade
e as cidades da Europa eram flores
com nomes estranhos mas perfumes
já muito conhecidos: eu era imune
aos venenos trazidos pelos sorrisos
das mulheres, dos homens e das
crianças.

Hoje
um verso quebrado me completa
e a métrica dos meus dias futuros
perde fôlego sob a sombra das rimas
que já se cumpriram: minha história diz
o que a carne calada sente,
e por um triz não grita,
mas reverbera
sem saber.

Paro. Respiro.
Respire comigo.
Perceba: o verso divisa, revisa,
o verbo conjugado por tuas narinas.

Poesia é voo 
e tropeço.

Não há rima que não possa
- não deva - ser quebrada.
A asa perde as penas,
o ritmo do seu bater
é tudo, e nada
importa mais
que isso.

O poema.
No fim, ao cabo,
ao longo, e sempre.

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