Tive um avô postiço, vizinho de apartamento e amigo da família desde que o mundo era mundo, bom português de pele branquíssima e bigodes negros como as noites dos contos de fadas. Excelente padeiro e confeiteiro, que fez todos os lindos e imensos bolos de aniversário da minha infância, dos quais lembro-me apenas pelas fotografias em sépia guardadas num álbum antigo, esquecido numa dessas gavetas da nossa alma onde a gente pouco mexe.
Bom cristão, católico apostólico romano, torcedor do América, conhecedor dos palavrões mais cabeludos, e dos descabelados também. Nos dias de semana levava-me para a escola, eu de calças curtas de cor marrom, a camisa cáqui engomada e perfumada, a gravatinha também marrom no mesmo tom da calça e os sapatos pretos bem engraxados; minha irmã, dois anos mais nova, vestida com o mesmo esmero e nos mesmos trajes, trocando as calças curtas por uma saia de pregas, e laços de fita nas duas trancinhas. Uma criança em cada mão, e um sorriso triunfante na boca, mas principalmente nos olhos. Vovô Quincas nos levava pelo caminho mais longo, por onde poderíamos ver o comércio, as pracinhas... e colher rosas para a professora mais querida e comprar jujubas para a hora do recreio.
Meu avô era um gigante doce como as margaridas e os gatos da rua, um herói da estatura daqueles que eu via na enorme versão ilustrada da Bíblia Sagrada que uma tia nos mostrava para contar as estranhas histórias de como Jeová mandava e desmandava em seu povo, os tais escolhidos, que viviam tendo que sacrificar ovelhinhas para o seu Deus exigente, petulante e inseguro, pois fazia questão de lembrar que deveríamos amar somente a Ele, e a nenhum outro deus. Mas meu avô era dos heróis bonzinhos, como o Noé que já tão velhinho construiu a arca com a qual salvaria todos os bichinhos do planeta, em pares de namorados, até que passassem os tempos de tempestade que seu malvado deus mandou para maltratar seu povo que, com um simples gesto de amor do tal onipotente, poderia ter sido admoestado e reabilitado para uma vida melhor e mais justa.
Aos domingos, enquanto os demais estavam na missa, ele sentava-se na varanda comum aos dois apartamentos, que era na verdade um hall de entrada para cada residência, uma artéria comum aos apartamentos 105 e 107, a certeza física de que aquelas famílias viveriam sua sina comum sempre juntas. Sentava-se impávido com seu pijama de algodão, com um bolso á altura do peito e o brasão da sua família bordado com capricho. Passava a manhã sentado na cadeira-do-papai, móvel muito comum na época, destinado aos chefes da família… e tomava o seu café-com-leite quentíssimo, comia pão caseiro com manteiga e folheava o 'Jornal do Brasil' e depois o 'Meia Hora' com uma alegria circunspecta, escolhendo notícias felizes (sim, haviam notícias felizes no mundo de outrora) e passando a folha para minha leitura. Enquanto eu lia o jornal ele aplaudia, rindo da minha pronúncia claudicante e me animando a prosseguir:
- Isso mesmo, meu preto! Muito bem! Vá mostrar ao teu pai que tu já sabes ler, que tu já és um homem!
E eu ia feliz contar a novidade, enquanto minha irmãzinha enchia meu avô de carinhos, e depois o colocava como um brinquedo:
- Vovô, fica quietinho que eu vou fazer um penteado bonito!
E ele deixava-se pentear por longas sessões, e minha irmãzinha experimentava nele os mesmos penteados que fazia nas bonecas, com lacinhos de fita vermelha, amarela, azul, verde.
Meu avô dava-nos presentes demais, miudezas, é verdade, mas eram com tanto carinho que nunca ninguém conseguiu superá-lo. Dava-nos dinheiro e ensinava a gastar, levava-nos á escola, apresentava-nos aos outros velhos e nos ensinava a dar boa tarde, e deixava-nos brincar com os cães e os gatos da rua, e ensinou-me a jogar milho aos pombos e iniciou-me nos primeiros rudimentos da Política, da Filosofia e da boa arte de xingar com e sem precisão, desvendando para mim certas palavras portuguesas cujo significado mágico eu aprendia e contava aos meus amigos como quem conta um segredo ou perfaz um número circense, um prestidigitador do vernáculo.
Meu avô postiço morreu nos braços de minha mãe enfermeira numa tarde fria de outono, e deixou um vazio enorme na rua onde morávamos. Ele era o Vovô Quincas de todas as crianças do bairro, era meu Vô Joaquim, velhinho rabugento de mentirinha, cuja companhia eu preferia á das outras crianças da rua, meu mestre e meu amigo, que me deixou cedo demais, o primeiro ser humano próximo de mim que morria e me dava aquela derradeira lição, de lidar com a finitude dos corpos e com a imortalidade dos exemplos, das almas, das lembranças.
Hoje tenho mais fantasmas para chorar: minha mãe, minha avó, alguns tios, outros amigos... mas meu bom Joaquim foi o primeiro a aventurar-se naquelas terras longínquas de onde jamais se volta nem se dá notícia, e por isso escrevo sobre ele, meu primeiro exemplo de vida e de morte. Meu avô, cuja lembrança me dói demais nessas manhãs de domingo e principalmente no Natal, deixou em mim uma herança feita de aço e algodão doce, e uma saudade imensa e vontade eterna de que alguém aparecesse hoje e me batesse no ombro e dissesse sorrindo:
- Isso, meu preto! Muito bem, muito bem!