Ask Google Guru:

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

FOTOGRAFIA




Fotografia

O nariz típico do Mediterrâneo,
aqueles cabelos finos sobre a desnuda nuca,
no corpo marcas de um fogo subcutâneo,
o sambinha miudinho e muito discreto
que deixa o poeta surpreendentemente ereto,
a voz tímida e meio rouca,
a conversa típica dos gênios e dos loucos,
os gestos contidos, mas com mãos fortes,
os seios pequenos, mas convidativos,
o colo que convida ao nascimento, ou á morte,
o jeito de olhar como quem não está olhando,
o jeito de tocar como quem mal está sentindo,
o jeito de andar como quem nem está caminhando
o jeito de sorrir como se fosse o mundo que estivesse sorrindo
a forma com que te vejo sem descobrir se és menino ou menina,
a forma que te mostras, deixando impossível encontrar a certa rima,
assim és, amiga e súbita companhia de sonho e de poesia:
és um sol em alta noite, és a lua em pleno dia!


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RETRATOS DE UMA DEMOLIÇÃO DA ALMA



As cores do domingo
mofadas nos altares
onde os anjos agonizam
com asas imóveis e um sarcástico sorriso.

As cores da praça do cais
onde as mulheres de vida difícil
ganham fácil o ouro dos tolos e dos velhos
que na igreja, no puteiro, na vida… estão sempre de joelhos.

As cores indecifráveis da sua geometria interna
que me fazem parar para examinar seios, coxas e pernas
e ouvir a tua voz mansa e o teu abraço firme e generoso
como Paulo de Tarso em sua efeméride: martírio ou gozo?

As cores que fogem em bandos, voando através das telas
pintadas com um pouco de mágoa, um pouco de alegria
e as vontades comprimidas pela moldura, prisão insegura
que ilude percepções: a arte ainda não inventada, nossa eterna procura!

As cores dos teus olhos, fundando o arco-íris negro,
onde pedra e cetim se encontram sem machucar-se
e onde poetar não é preciso, navegar não é preciso,
e viver é apenas subverter, sem alarde, sem aviso!


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domingo, 17 de outubro de 2010

MAGRINHA



O bom José queria mulher bonita
destas morenas magrinhas das capas de revista
que ele tanto observava, como o faminto olha o pão.
Mas ele era pobre, e feio, apesar de ter bom coração
e saber fazer como nenhum outro homem os melhores carinhos.
Certo dia topou com uma incerta Maria, que cruzou seu caminho
já fazendo cara de esposa e exigindo-lhe chocolates e uma rosa
vermelha, da cor da paixão que ele nem sabia que já tinha!
Maria era tempestuosa, voz grossa, gorda, fumante, barulhenta,
tinha o perfume do óleo da cozinha e na cama soltava fogo pelas ventas
ao jogar o pobre José de um lado para o outro (que sufoco!)
dizendo ao sujeito que o que ele tinha para dar ainda era pouco.
Maria rasgou as revistas, matou as magricelas sem nome
e José casou-se, virou operário, criou barba, seus olhos perderam o lume.
Mas este é o destino que nos aguarda a todos, quase sempre
porque começamos a nos perder ao sair do materno ventre
e aceitamos a felicidade da forma que for posta à mesa
nem que seja em forma de alguma sinistra surpresa.
José teve um filho, Caetano, que ao chegar em idade certa
também olhava as magrinhas e sonhava em ser poeta
e ensaiava versos e carinhos, e poetava pensando nos peitinhos
duros de alguma ninfa de cujo nome jamais saberia.
Também Caetano encontrou sua gordinha e seu destino de padeiro
daqueles que correm o subúrbio de manhã com buzina e bicicleta.
José e Caetano, pai e filho, foram felizes à força (brasileiros)
e suportavam com ternura o quinhão de amor e sonho que lhes cabia
porque, no fim das contas, é aí que mora a verdadeira poesia.


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A HORA ABSURDA




Na absurda hora
em que o amante na treva se assemelha
ao crente que perante uma vela se ajoelha
assim estarei eu, poeta, amando sozinho.

Na absurda hora
em que irmãos em guerra trazem vergonha a Deus
e os santos na taberna vendem suas almas aos ateus
assim estarei eu, poeta, num triste caminho.

Se algum dia houve
hora mais absurda que esta
não saberei, pois amo, e amar é uma cegueira
que se adquire por própria vontade.

Se algum dia houve
hora mais perfeita para o martírio ou para uma festa
não posso saber, pois em verso, prosa e demais maneiras
tento sem sucesso dar corpo a este sentimento torto chamado saudade.


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QUEBRA-CABEÇAS



Metade da minha realidade se passa dentro da minha cabeça.
O resto são coisas que alguma divindade oculta coloca no caminho
como se fosse uma criança brincando com um jogo de encaixar as peças!


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AMIGOS




Amigo é aquele que sabe tudo sobre a sua vida...
e ainda tem coragem de continuar gostando de você!

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

COMO NASCEM AS ESTRELAS



Como nascem as estrelas?

[Poesia colaborativa de Marcelo Sousa e Thauan Raposo.]


Meus heróis são anti-heróis por natureza.
Carne, osso e desequilíbrio. 
Nisso consiste a sua beleza!
O olhar feérico dos caçadores de dragões.
A ternura dos esmagadores de crânios.
O espírito livre dos santos prostituídos
por deuses que só desejam fornicar.
Meus heróis são anões perto de mim
mas sua barba de algodão e sua capa de cetim
fazem com que eles sejam tão irônicamente estranhos
que só poderiam ser habitantes dos meus sonhos
e todos sabem o quanto são poderosos
os entes que habitam nosso sub-consciente.
O cerebelo do poeta
para os deuses é uma caminha aconchegante!
Vejo-os voando com uma certeza precária
e torço para que caiam, para melhor fim da história!
Os meus heróis buscam fracassar com orgulho
e jamais usar as sandálias de qualquer vitória!
Meus heróis são assim, os que se machucam
mas levantam com um sorriso amarelo
e caminham em direção ao pôr-do-sol
dizendo: não foi nada! Amanhã tentaremos novamente!
É nessas horas que transborda vida, clara e faiscante
sob a alcunha de amante, mulher ou enfim, estrela.
[Deus no céu escolhe uma cor bem bonita
e no manto escuro da noite Ele pinta.]
Assim vamos dormir nosso sono desabrigado
sem precisar de teto, portas, travas, trincos ou trincas.
Quando um poeta sonha, uma estrela nasce
e fica claro com quem o Cosmos brinca!



quinta-feira, 14 de outubro de 2010

EX FUMO DARE LUCEM




Sigo em frente
na foz nas das gentes
ouvindo vozes antigas
e o marulho solfejante das ondas.

Tiro fotografias instantâneas
não daquilo que está á margem
mas das coisas sucedâneas, subcutâneas,
aquelas que trazem calma e vertigem.

Ando com passos de bêbado na corda bamba:
esse é meu compasso, passear por bossas e sambas.
Esse corpo nasceu comigo, mas descolou-se da alma logo cedo:
certas partes de mim são infinitas, outras quebram fácil como brinquedos.

Mar... teu latim de pedras azuis que cantam para mim
as canções de ninar que minha mãezinha no céu já se esqueceu.
Ouço, oceano, e transbordo de poemas que jamais virão á luz.
O Gólgota está vazio. Não fará mal jogar pedras na cruz.

Teço sem pressa a salmodia das madrugadas que se vão em gestos sem pudor.
Deus está morto. Mas o menino-deus, travesso, atravessa meus versos com amor.
Fui um bom cristão, trafiquei meu sangue azul entre as princesas e as putas do cais.
Grito o nome de Deus no deserto, mas meu eco é esperto, e não reverbera meus ais.

Quem sou eu debaixo deste véu? Quem é o homem que vejo no espelho?
Quando eu era criança tocava o céu. Hoje me resta o pó: estou ficando velho!
Mas o que farei com tantos carinhos ainda não gastos? Voarei para outro planeta?
Aos palhaços cabe esse destino, envelhecer, ver o circo pegar fogo, e rebatizar-se de poeta!


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quarta-feira, 13 de outubro de 2010

REFORMA SIDERAL




[Poesia colaborativa de Matheus Torreão, Thauan Raposo e Marcelo Sousa]


Quando a gravidade 
dos que mandam tanto
for uma força completamente nula
os povos poderão, sem espanto,
saber que bobo é quem só acumula.

Quem junta moedas 
debaixo do colchão
ou quem espera deixar para a posteridade
o fruto do seu trabalho muito suado
está muito enganado, é bobo
porque a falta de gravidade
é o inevitável roubo.

Os casarões voarão como papel
e as palafitas e barracos coloridos
flutuarão como nuvens no céu.
Os que vivem nos abrigos atômicos
serão arrancados como árvores 
indo pelos ares com raiz e tudo
e os profetas da era digital 
estarão todos mudos.

Sem moedas, sem medos,
as vaquinhas voando para Saturno
e no dia das eleições municipais, 
estaduais ou federais
os candidatos, tão fleumáticos, 
estarão no mundo da lua
e o povo vai sambar a ausência 
de um segundo turno 
no meio da rua.

Não vamos ter que escolher 
patrões nem políticos
nem vamos depender mais 
de deuses cansados, raquíticos.
Cada homem sem terra terá enfim 
seu quinhão de céu, de ar
e às crianças desde cedo 
será natural aprender a voar.

Reforma agrária? Essa precária forma 
de dividir o que já é nosso?
De que vale repartir a carne, 
se não nos pertencem os ossos?
Quando o mundo acabar, 
crianças e velhos vão rir demais
vendo como fogem como baratas 
os nossos líderes mundiais.

Ninguém vai precisar botar cerca no quintal
porque tem espaço de sobra no espaço sideral.
Ninguém vai precisar fazer guerra por novos domínios
porque todos seremos sem-terra, seremos meninos.
Se não tem gravidade, acabou a confusão
porque nunca mais ninguém vai brigar
por um triste pedaço de chão.



SONHOS




Desci as escadarias da madrugada com uma pergunta colada entre as sobrancelhas.
Por que motivo construí tantos labirintos entre uma palavra e outra, se no verso todas são iguais?
Eu mesmo não me entendi quando a resposta chegou abrupta, sístole e diástole em um só golpe.
Engoli a seco, parei acuado num desses becos onde a filosofia e a religião são dois cães raivosos
latindo e babando, presos a uma fina corrente que pode arrebentar a qualquer hora.
Deus pede que nós o amemos, mas na verdade Ele implora, cheio de medo e mágoa.
Este homem que anda sobre as águas fomos nós mesmos que o inventamos.
Mas justamente por ser nossa cria, é preciso que o cuidemos com carinho.
Deus, sozinho, não existe, não anda. Deus implora fazendo a mímica de quem manda!
E nós, criadores dessa história, acreditamos que é verdade a verdade que acabamos de inventar.
Ah, se o homem pudesse entender o que canta o imenso mar! Mas olha para estrelas mortas
que muito brilham, mas na verdade já não podem cantar!
Madrugada adentro sonhei com portas que não levavam a nenhum lugar.
Sonhei que entendia o oceano com seu fastidioso canto,
e esperei sereias que não vieram afogar-me com seu sexo
e dividir, em pleno mar, o sal de Netuno do sal do meu pranto.
Sonhei que estava acordado, para meu espanto.
Parei, trágico, presumindo furacões vindos do fundo da minha garganta.
Queria gritar, mas percebi que meu cenho desanuviou-se
e eu deixei-me deitar no chão frio como em uma cama de flores.
Não sei se morri ou simplesmente voltei a dormir,
mas no outro dia tudo era igual, amando as mesmas pessoas
e sentindo as mesmíssimas dores.



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SORRIR




Sorrir é um exercício matutino
como escovar os dentes, fazer a barba
e apertar o nó da gravata para enfrentar o dia.

Sorrir é a maldita rotina muscular
que me faz forte aos olhos dos outros
ainda que com ele eu engane a poucos.

Mas sorrio, e mantenho sorrisos diversos
para as mais diferentes ocasiões e eventos
que transcreverei aqui, mais tarde, sob enviesados versos.

Sorrio e vivo, ato contínuo mas sem vontade. A vida é bela.
O que tem mais calor, o Sol, sentado em seu trono há milhares de quilômetros
ou sua lembrança, que dentro de mim brilha mais que a maior das estrelas?

Ah… sorrir! Se me olhasses de repente, jurarias que meu riso é verdade.
Estranho pensar nisso, imaginar que há tantos anos vivo esta mentira.
Mas Deus é bom, mesmo em Sua divina maldade. Deus dá, mesmo quando tira!

terça-feira, 12 de outubro de 2010

CITAÇÕES BÍBLICAS



Tinha que ser poeta o cristão (ou cafetão)
que com bíblicas palavras teve uma epifania
e com pureza de alma e de coração
mandou gravar em uma tábua de madeira:
"Deus ama a que dá com alegria!"
e colou isso na porta de um puteiro!

( Inspirado em II Coríntios 9:6-10)


O SEMEADOR DE ESTRELAS



Quando velhinho
e todos pensarem
e aceitarem
que estou louco
vou pegar verso a verso,
pouco a pouco
e como uma criancinha
salpicarei estrelinhas
nas entrelinhas!

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segunda-feira, 11 de outubro de 2010

AVE DE RAPINA




Não serei como Ferreira Gullar
poetando lentamente dentro da noite veloz.
Nem poderia ser como Nina Simone
que cantava dores colossais com a mais doce voz.

Não serei vitimado pela má sorte
mantendo a fleuma, engolindo o choro.
Não consigo ser como o que descobre a pólvora negra
e na madrugada escura a enterra como ouro.

Às vezes acho bom estar sofrendo tanto
porque aos malvados o pranto convém.
Nunca disse que sou santo,
mas quero amor, sexo, carinho, dinheiro… e quem tudo quer nada tem.

Sou o que murmura os mesmos versos
em diferentes poemas.
Escrevo com sangue, esperma, fezes, fel, urina…
para o público horror e secreto gozo das almas pequenas.

Sou maldito por escolha e vocação
e solitário porque assim ordenou-me o destino.
Mas algumas vezes escondo meu imundo coração
atrás desses meus olhos tristes de menino.

Não creia na minha dor
não te comovas com as minhas rimas.
Já não sinto mais amor:
sou ave de rapina!

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quinta-feira, 7 de outubro de 2010

EXISTIR É UM ETERNO POR ENQUANTO




Esse é o tempo de deixar escorrer entre os dedos
os segundos, os minutos, as horas, os medos
porque o tempo dentro de mim é muito precário
uma vez que conto ele sempre ao contrário!

O quanto me falta pra nascer de novo
se o melhor é advinhar o que há dentro do ovo?
E se eu cair, quem estará lá para aparar o tombo?
Eu salto abismos sem paraquedas só para experimentar o assombro!

Ser assim não me revolta,
pois já me acostumei ás alturas e á queda.
Nem mesmo o amor faz-me tanta falta:
compra-se disso hoje por aí com apenas algumas moedas.

Mas se eu olhar debaixo das minhas saias
e descobrir que aquela metade não sou eu?
E se de repente me volta o tal Messias
cantando um samba pra me levar pro céu?

Será que eu vou querer partir desse mundo
podendo-querendo-sabendo, eu poeta,
roubar dele, com papel e caneta,
mais um segundo?

Viver um segundo, de repente
nos braços de quem nos quer bem
é melhor que passar uma eternidade como crente
sozinho, sentado em uma nuvem, dizendo amém!

Todos julgam-me como tendo um juízo muito precário
mas eu prefiro ser assim mesmo, melhor que ser esperto ao contrário.
Não vou contar o tempo que me falta pra nascer de novo
porque pra mim esse corpo, essa existência, é só a casca do ovo!



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terça-feira, 5 de outubro de 2010

JOAQUIM, O PADEIRO




 Tive um avô postiço, vizinho de apartamento e amigo da família desde que o mundo era mundo, bom português de pele branquíssima e bigodes negros como as noites dos contos de fadas. Excelente padeiro e confeiteiro, que fez todos os lindos e imensos bolos de aniversário da minha infância, dos quais lembro-me apenas pelas fotografias em sépia guardadas num álbum antigo, esquecido numa dessas gavetas da nossa alma onde a gente pouco mexe.


 Bom cristão, católico apostólico romano, torcedor do América, conhecedor dos palavrões mais cabeludos, e dos descabelados também. Nos dias de semana levava-me para a escola, eu de calças curtas de cor marrom, a camisa cáqui engomada e perfumada, a gravatinha também marrom no mesmo tom da calça e os sapatos pretos bem engraxados; minha irmã, dois anos mais nova, vestida com o mesmo esmero e nos mesmos trajes, trocando as calças curtas por uma saia de pregas, e laços de fita nas duas trancinhas. Uma criança em cada mão, e um sorriso triunfante na boca, mas principalmente nos olhos. Vovô Quincas nos levava pelo caminho mais longo, por onde poderíamos ver o comércio, as pracinhas... e colher rosas para a professora mais querida e comprar jujubas para a hora do recreio.


 Meu avô era um gigante doce como as margaridas e os gatos da rua, um herói da estatura daqueles que eu via na enorme versão ilustrada da Bíblia Sagrada que uma tia nos mostrava para contar as estranhas histórias de como Jeová mandava e desmandava em seu povo, os tais escolhidos, que viviam tendo que sacrificar ovelhinhas para o seu Deus exigente, petulante e inseguro, pois fazia questão de lembrar que deveríamos amar somente a Ele, e a nenhum outro deus. Mas meu avô era dos heróis bonzinhos, como o Noé que já tão velhinho construiu a arca com a qual salvaria todos os bichinhos do planeta, em pares de namorados, até que passassem os tempos de tempestade que seu malvado deus mandou para maltratar seu povo que, com um simples gesto de amor do tal onipotente, poderia ter sido admoestado e reabilitado para uma vida melhor e mais justa.


 Aos domingos, enquanto os demais estavam na missa, ele sentava-se na varanda comum aos dois apartamentos, que era na verdade um hall de entrada para cada residência, uma artéria comum aos apartamentos 105 e 107, a certeza física de que aquelas famílias viveriam sua sina comum sempre juntas. Sentava-se impávido com seu pijama de algodão, com um bolso á altura do peito e o brasão da sua família bordado com capricho. Passava a manhã sentado na cadeira-do-papai, móvel muito comum na época, destinado aos chefes da família… e tomava o seu café-com-leite quentíssimo, comia pão caseiro com manteiga e folheava o 'Jornal do Brasil' e depois o 'Meia Hora' com uma alegria circunspecta, escolhendo notícias felizes (sim, haviam notícias felizes no mundo de outrora) e passando a folha para minha leitura. Enquanto eu lia o jornal ele aplaudia, rindo da minha pronúncia claudicante e me animando a prosseguir: 


- Isso mesmo, meu preto! Muito bem! Vá mostrar ao teu pai que tu já sabes ler, que tu já és um homem!


E eu ia feliz contar a novidade, enquanto minha irmãzinha enchia meu avô de carinhos, e depois o colocava como um brinquedo: 


- Vovô, fica quietinho que eu vou fazer um penteado bonito!


E ele deixava-se pentear por longas sessões, e minha irmãzinha experimentava nele os mesmos penteados que fazia nas bonecas, com lacinhos de fita vermelha, amarela, azul, verde.


 Meu avô dava-nos presentes demais, miudezas, é verdade, mas eram com tanto carinho que nunca ninguém conseguiu superá-lo. Dava-nos dinheiro e ensinava a gastar, levava-nos á escola, apresentava-nos aos outros velhos e nos ensinava a dar boa tarde, e deixava-nos brincar com os cães e os gatos da rua, e ensinou-me a jogar milho aos pombos e iniciou-me nos primeiros rudimentos da Política, da Filosofia e da boa arte de xingar com e sem precisão, desvendando para mim certas palavras portuguesas cujo significado mágico eu aprendia e contava aos meus amigos como quem conta um segredo ou perfaz um número circense, um prestidigitador do vernáculo.


 Meu avô postiço morreu nos braços de minha mãe enfermeira numa tarde fria de outono, e deixou um vazio enorme na rua onde morávamos. Ele era o Vovô Quincas de todas as crianças do bairro, era meu Vô Joaquim, velhinho rabugento de mentirinha, cuja companhia eu preferia á das outras crianças da rua, meu mestre e meu amigo, que me deixou cedo demais, o primeiro ser humano próximo de mim que morria e me dava aquela derradeira lição, de lidar com a finitude dos corpos e com a imortalidade dos exemplos, das almas, das lembranças.


 Hoje tenho mais fantasmas para chorar: minha mãe, minha avó, alguns tios, outros amigos... mas meu bom Joaquim foi o primeiro a aventurar-se naquelas terras longínquas de onde jamais se volta nem se dá notícia, e por isso escrevo sobre ele, meu primeiro exemplo de vida e de morte. Meu avô, cuja lembrança me dói demais nessas manhãs de domingo e principalmente no Natal, deixou em mim uma herança feita de aço e algodão doce, e uma saudade imensa e vontade eterna de que alguém aparecesse hoje e me batesse no ombro e dissesse sorrindo: 


- Isso, meu preto! Muito bem, muito bem!


SUPERFÍCIE




Não te importes com as firulas do cérebro
nem com as sutilezas da alma, meu amigo.
Saiba que é à flor da pele que mora o perigo!

OLHOS NEGROS




Uma vez apaixonei-me primeiro por teus neurônios
e só mais tarde meu cerebelo entendeu-se com meus hormônios
mas então já estávamos nos separando e eu, desonrado, fui para o fim da fila:
tornei-me o último homem do mundo a ser focalizado por suas negras pupilas.


QUANTO VALE



Tudo tem seu preço
registrado e tabelado na praça.
Aquele que não souber vender na hora certa
mais tarde acabará tendo que dar de graça.

sábado, 2 de outubro de 2010

MAL SECRETO



Queria descer à fonte impura
como quem vai à pia batismal,
queria tua boca, tua língua à procura
da seiva escondida, do secreto animal!

Queria não ter que escolher
entre ser poeta ou estar ereto.
Queria que “homem” ou “mulher”
não limitassem as almas a um mal secreto.