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quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

O AMANHECER NA ILHA DOS TORTOS

  



Naquela noite de Natal ouvi sinos tocarem e achei que estava tendo um pesadelo. Acordei brevemente, olhei o céu ainda escuro e imaginei que Deus estava dormindo debaixo d'uma colcha rosada de nuvens. Eu podia ver passar os cummulus nimbus cor-de-rosa em plena noite sem estrelas, e sabia que alguma tragédia estava sendo engendrada no porvir, como teia de aranha armada com zelo e requintes de crueldade. Teia: ninho e armadilha. Encanto! Eis a palavra: encanto. Talvez o amor brotasse como flor noturna, de um perfume enjoativo e inebriante, como a tragédia que liberta. Talvez. Não confio em remédios que não sejam muito amargos ou doces demais. Viver é curar-se sempre e constantemente da mesma doença; rolar pedras ladeira acima, só para vê-las despencarem novamente para o fosso, e depois voltar, respirar, e recomeçar todo o trabalho. Novamente, e de novo, e sempre. 


Recorto memórias do que não houve. É tudo verdade, mas nem tudo aconteceu.

  Lábios vorazes desenharam flores negras no ar, e foram as palavras mais doces que um anjo caído poderia proferir em hora de tamanha calma. Manhã lodosa, lenta, os patos e as garças fazendo algazarra na lagoa, os caranguejos costurando sua baba silenciosa entre as raízes do mangue, e o sol sem convicção a mirar o mundo por trás da montanha, qual menino envergonhado, talvez com medo dos olhares cinzentos da cidade. 

  Eu era todo vírgulas, e reticente já nos começos, mastigava sem pressa o cuscuz das primeiras palavras do dia, ouvindo e imitando os que já estavam acordados, parlapatões. Cantilena, poesia: mil sapos pustulentos a coaxar a dor dos homens, e a lagoa fervilhando de serpentes cegas, que seguiam essas correntes que não levam a lugar algum. Pescadores com rostos enferrujados passaram com seus arpões brilhantes e suas redes de malha grossa. Desejaram-me um bom dia. Promessas resmungadas como quem diz a missa num latim inventado, a ver se um deus qualquer, zangado, poderia fazer mover-se para um lado ou para o outro a montanha de mágoas que puseram em meu caminho.

  Tudo há de se duvidar. Esmola em dia santo. Palavra de ternura no calor do sexo. Favor oferecido por mãos branquinhas e muito limpas. Camisa lavada e perfumada com pétalas de rosa. A luz do sol refletida nas águas pouco remexidas. As nuvens escondendo o granito imemorial das montanhas. As fossas abissais e as valas de verde-musgo salpicadas nas encostas da cordilheira. As cavernas onde morcegos dormitam com um olho aberto e outro fechado. O cheiro das jacas, mangas e goiabas que caíram de maduras na noite anterior. O perfume do luar ainda persistente sobre a pele das ervas orvalhadas de pérolas reluzentes. A voz das sereias, o ronco do mar que mastiga as rochas do litoral, os deuses-anões que moram debaixo dos cogumelos cor-de-abóbora e dentro dos troncos ocos, apodrecidos pelo nosso esquecimento. Os fachos de luz lilás que irradiam dos olhos das carpas no aquário da nossa memória. A inglória virtude de ser você, só você, sobretudo você, para além da casca humana e dos trovões do Olimpo. 

  Fiz do outrora meu descanso, refúgio e bálsamo. Morri para os detalhes do agora, vivendo como bruta caricatura, eficiente nos atos e econômico nos fatos. Fogo-fátuo. Eu. E minh'alma sem norte. E para além do mundo jazem as alminhas que esperam para nascer. Ah, ouvir e não entender! Palavras de ordem. Salves e vivas! Meus gametas gritando augúrios enquanto ânforas de afeto deságuam-me dos olhos. Oh, rubor! Oh, desmesurada pequenez! O amor pediu passagem já passando, pisando girassóis no caminho. E eu sozinho deixando-me levar: amar é vasto como o mar. 

  E de esperar ninguém se cansa. Esperança brava, dolorida. E viver é um cozer de trapos rotos, com linha de ouro e botões de marfim. E todo fim é no tempo certo. Com um recomeço encrustrado na palma da mão, entre signos e linhas mestras, cordames de outros destinos, deixados para trás. Mesura e medida que se tem em conta: horinhas boas pra viver e morrer, o que é sempre a mesma coisa, mudando apenas o sentido de quem vem e vai. 

   Eu esperava. Cansado. Olhos fechados pra enxergar melhor. E pedindo que Deus não me entenda: sou, mas nunca deveria. E de dizer amém ninguém perde o senso. Incenso, velas, pra quê? Há o sol que já perdeu o medo de castigar os pobres, e a lua cheia de mandingas pra confundir os tolos.

  Tudo é planície para quem espera. O peso das horas verga os galhos dos baobás entumecidos, grávidos de perguntas sem resposta. O tempo esperou passar a fúria das marés para que pudessem crescer espinhos sob meus pés descalços e me ensinar dores mais gostosas, e maus-tratos saborosos à carne curtida e salgada nos maremotos e tempestades que todos fazemos em copos d'água. 

  Esperamos. O tempo germinou a hera, a mandrágora, o heléboro negro, a sálvia e o alecrim. Enfeitei meu corpo com cicatrizes vistosas e fui ao baile, dançar a valsa com minhas sombras, inquilinas da minha alma. E tudo resolveu dar certo, por vias tortas. E fez-se de pedra o momento breve em que tudo é deserto e todo caminho leva ao inevitável acidente de um final feliz.

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