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quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

O HOMEM GENTIL






O homem genial e gentil existe, mas não o vemos. Não somos nós, não é ninguém que eu conheça, mas sei (tenho essa vã esperança) que ele existe, resiste, n'algum lugar distante. Este homem pouco sabe de si, pouco vive e morre muito, aos poucos, todo santo dia.

Nem mesmo ele se vê, porque em todos os espelhos ele usa uniforme, e se acostuma a dizer "sim senhor" às pessoas e principalmente aos relógios. Em casa diz que sim, e pede perdão, no trabalho diz que está pronto, sempre alerta, no sonho finge que está acordado, está desperto, o peito aberto sempre para o bem e o mal do mundo, as mãos mais velhas que seus olhos, os olhos mais cansados que o corpo, o corpo mais torto que a alma, a alma escondida como um gato preto em noite sem lua.

O homem bom é criminoso, não vítima. Ele existe quando não deveria, ama quando não poderia, responde quando precisaria silenciar, respira mesmo sabendo que seus pulmões já não suportam o perfume cotidiano desse ar. Este homem, que não vai à missa aos domingos, acorda com dor, mas sorrindo. Seus carinhos, guardados na ponta dos dedos, são inúteis, porque dele se espera que seja forte, que seja fiel ao mundo, que seja o primeiro da fila, e gire a roleta russa com a certeza de que qualquer resultado o fará feliz.

O homem genial, gigante, é para o mundo um anão que diz sempre sim, que não ouve as flautas, os bandolins, as harpas, o bocejo do mar, o arpejo das aves que voam para longe, a algazarra dos gatos nos telhados, o homem bom não pode se matar de amor, de tiro ou vício. Cabe a ele viver sua doce maldição, e esperar qualquer bala perdida ou qualquer paixão errada, encontrada numa esquina qualquer, sua mulher, sua princesa, certa como a luz de mil vaga-lumes à margem da alvorada.

Este homem que poderia ser genial e gentil, este homem que poderia ser bom, precisa na verdade ser forte e pequeno, caber nos anseios do outro, dos outros, de muitos que vigiam solenemente com um sorriso no rosto. Ele precisa cumprir suas obrigações frente ao mundo com a maestria comedida de quem já não espera nada além do momento do estouro, o trovão, o fogo que lhe queimará as carnes curtidas pelo sal da vida, pelo sol dourado e dolorido, ah este homem (que já não existe) vez em quando aparece, sorri - sem ênfase - e obedece como quem diz uma prece, ama como quem padece, dorme sujo e sozinho, e esquece que tem que acordar limpo, descansar de pé, engolir o café amargo da vida e o pão pisado pelo tempo. 

Este homem precisa ser genial e gentil sempre, sem mostrá-lo nunca, nunca, jamais. Eis o segredo de toda a sua tristeza, e também da sua paz.

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