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segunda-feira, 23 de junho de 2014

ALVORADA


O cego-ancião Borromeu acordava todos os dias às quatro e quinze da manhã, fazia um café forte com seis colheres de leite e uma pitada de canela. Tateava os pergaminhos com os dedos como se tivesse olhos nas mãos, balbuciando as leis e os códigos, passeando pelas alegorias e epopéias, avançando e retrocedendo na história do mundo, na aventura dos homens sobre a terra. Em certo momento, como se um cuco interno o avisasse, Borromeu levantava, vestia o capote e seguia para cumprir sua rotina. Subia lentamente as escadarias da torre mais alta da cidade e se sentava frente à única janela que havia ali. Na verdade não era uma janela, mas uma abertura em forma de meia lua, por onde o cego-ancião gritava as primeiras preces do dia, exatamente ao nascer do sol, que ninguém sabe como ele percebia com exatidão, mas que jamais havia falhado. A prece durava exatos oito minutos e podia ser ouvida na cidade inteira, desde os palácios do governo até os becos escuros do subúrbio, desde as colinas verdejantes do leste com suas mansões de mármore até as baixadas fétidas onde as palafitas se equilibravam sobre as marés de sargaço. 

Borromeu subia a almádena com uma chama acesa sobre um pires branco. Deixava a vela sentar no chão e se acoxambrava na esteira ao lado, mãos nas coxas, o rosto recebendo a brisa e esperando a primeira luz de cada dia. Era um espetáculo belíssimo, que ninguém jamais presenciaria, quando a luz da primeira hora descia como uma poeira etérea, de um rosa-azulado que evoluía para um cinza-dourado sobre a pele de papiro cor de azeitona do mestre do canto.

Sabe-se que na madrugada do octogésimo oitavo ano de vida do cego-ancião, o café estava igualmente acre, as paredes igualmente frias, pegajosas de limo e silêncio, e a vela sebosa queimava igualmente, sem pressa. O cego mestre do canto subiu devagar, mas com passos certos e firmes, as escadas da velha torre. Lá no alto esperou a primeira réstia da estrela maior, já limpando a garganta para a prece lânguida e clara que tomaria a cidade, chamando a vida para desenrolar-se sobre todos os mortais. 

Mas, não naquele dia. 

Naquela manhã, quando a primeira luz banhou a face de Borromeu, o cego enxergou. As pregas de suas pálpebras, como sacos de estopa dourada, esticaram-se de terror. O cego viu o sol nascer. 

Desejou gritar, mas calou-se. Desejou olhar a cidade, mas fechou rapidamente os olhos, com força. Despejou uma única lágrima pelo canto do olho esquerdo, soprou a vela, pigarreou brevemente, e despejou a prece no ar vidrado da cidade. Aquela fora a única vez que o canto atrasou, ainda que ninguém tivesse notado. O canto-mestre da alvorada foi atrasado em exatos vinte e três segundos. 

Borromeu enxergou naquele dia. Depois lembrou-se de sua tarefa, seu ofício, seu lugar no mundo, e cantou. Ao fim do canto, sem esperar aplauso ou louvor, e sem ter a quem contar o milagre daquela manhã, desceu as escadas de olhos fechados, lentamente, mas com passos certos e firmes. 

O cego-ancião sorriu ao cabo da escadaria, de olhos fechados. Borromeu decidiu que era feliz, e nunca mais abriu os olhos.

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