Ask Google Guru:

sexta-feira, 27 de junho de 2014

MAS ONDE ENCONTRAR MARGARIDAS MAIS MORENAS E PALMEIRAS ASSIM INVENCÍVEIS




Naquela manhã em Vladivostok perdi mais do que tinha, 
e desde então segui adiante em vertiginosa carreira: 
descalço, leve, levíssimo das coisas deste mundo, 
mas com o peso de universos interiores 
sobre minhas costas marcadas.

Vi outonos coloridos rastejando sobre montes calvos.
Surpreendi verões irascíveis escalando a crista de ondas geladas.
Mas as primaveras e os invernos, trago-os dentro de mim.

As rosas de Salamanca, tímidas e murchas,
espalhadas por todos os canteiros que ladeiam a metrópole
ainda são infinitamente mais vermelhas que as daqui.

Nas coxas das negritas de Havana
enrolei o fumo de uma utopia perfumada
com Cravo da Índia, Alecrim de Lyon, Lima da Pérsia
e o mel de vulvas noviças molhadas pelo orvalho do Caribe.

Mas onde encontrar 
margaridas mais morenas
e palmeiras assim invencíveis?

Entre os carros pretos de Dublin
vi passar as bicicletas vermelhas mais bonitas
emolduradas pela crueza dos rastros de pólvora
sob estilhaços de vida e neve, de vida e neve,
de vida e neve.

As olivas gigantes da Grécia, 
na planície salpicada de verdes de todos os tons
azeitam o fim da tarde com seu perfume agridoce.

Os olhos azuis das loirinhas de Praga
refletem casarios velhos como o bem e o mal do mundo
sob telhados ungidos de prata, lápis-lazúli e ocre.

E o sexo perfumado de âmbar-gris
numa viela onde os gatos reinavam absolutos:
pretos, brancos, cor de mostarda, sal-e-pimenta,
todos devidamente pardos sobre os telhados de Turim.

Mas onde encontrar 
margaridas mais morenas
e palmeiras assim invencíveis?

No Zaire contei sementes coloridas
em cordões cheirando a primavera e suor
no colo nu de matronas de peitos murchos
e virgens com pele de seda e petróleo.

Ouvi o mestre do canto
chamar a alvorada sobre os casebres mouriscos
onde a meia-lua de pedra vigiava atenta e pesarosa
os mendigos invisíveis da bela Marrakesh.

Pisei descalço as tábuas de madeira rosada
do templo onde dezenove mil Budas sorriam displicentemente
e serenamente balbuciavam verdades há muito tempo ignoradas
que os monges de olhos riscados e pele de pergaminho liso em Kyoto
guardavam entre as sobrancelhas pretas desgrenhadas.

Nas festas do Soho conheci línguas de ácido
que me lamberam a alma com os carinhos mais vorazes
e sob as luzes que piscam velozes no céu de Manhattan
perdi meus primeiros anos de maturidade, como um menino.

Mas onde encontrar 
margaridas mais morenas
e palmeiras assim invencíveis?

Não planejo resistir a todos os vícios, 
nem enfrentar todos os demônios de cara limpa 
e mãos vazias.

Não conto os giros da terra.
Mas devia ter contado moedas e medos.
Sua falta hoje me condena, e eu sorrio.
Todo abismo merece um sorriso.

Os círculos de poesia no Leblon.
As rodas de samba em Madureira.
O peixe com molho de côco no Vietnam.
A aguardente cheirosa com larvas de cor fucsia
numa esquina de Tegucigalpa, debaixo da goiabeira.
A moça feia de Zurich, a boca vermelha, as coxas tectônicas,
a forma biônica dos seios pequenos sob a rubra sombra das macieiras.

Volto
sem perceber pertencimento.

- Em algum lugar no tempo
a minha terra não-prometida aguarda
esses meus ossos cansados de vagar. -

Nada lembrado pode ser mais cruel
que as memórias que inventamos.

[Mas onde encontrar 
margaridas mais morenas
e palmeiras assim invencíveis?]

Nenhum comentário:

Postar um comentário