Naquela manhã em Vladivostok perdi mais do que tinha,
e desde então segui adiante em vertiginosa carreira:
descalço, leve, levíssimo das coisas deste mundo,
mas com o peso de universos interiores
sobre minhas costas marcadas.
Vi outonos coloridos rastejando sobre montes calvos.
Surpreendi verões irascíveis escalando a crista de ondas geladas.
Mas as primaveras e os invernos, trago-os dentro de mim.
As rosas de Salamanca, tímidas e murchas,
espalhadas por todos os canteiros que ladeiam a metrópole
ainda são infinitamente mais vermelhas que as daqui.
Nas coxas das negritas de Havana
enrolei o fumo de uma utopia perfumada
com Cravo da Índia, Alecrim de Lyon, Lima da Pérsia
e o mel de vulvas noviças molhadas pelo orvalho do Caribe.
Mas onde encontrar
margaridas mais morenas
e palmeiras assim invencíveis?
Entre os carros pretos de Dublin
vi passar as bicicletas vermelhas mais bonitas
emolduradas pela crueza dos rastros de pólvora
sob estilhaços de vida e neve, de vida e neve,
de vida e neve.
As olivas gigantes da Grécia,
na planície salpicada de verdes de todos os tons
azeitam o fim da tarde com seu perfume agridoce.
Os olhos azuis das loirinhas de Praga
refletem casarios velhos como o bem e o mal do mundo
sob telhados ungidos de prata, lápis-lazúli e ocre.
E o sexo perfumado de âmbar-gris
numa viela onde os gatos reinavam absolutos:
pretos, brancos, cor de mostarda, sal-e-pimenta,
todos devidamente pardos sobre os telhados de Turim.
Mas onde encontrar
margaridas mais morenas
e palmeiras assim invencíveis?
No Zaire contei sementes coloridas
em cordões cheirando a primavera e suor
no colo nu de matronas de peitos murchos
e virgens com pele de seda e petróleo.
Ouvi o mestre do canto
chamar a alvorada sobre os casebres mouriscos
onde a meia-lua de pedra vigiava atenta e pesarosa
os mendigos invisíveis da bela Marrakesh.
Pisei descalço as tábuas de madeira rosada
do templo onde dezenove mil Budas sorriam displicentemente
e serenamente balbuciavam verdades há muito tempo ignoradas
que os monges de olhos riscados e pele de pergaminho liso em Kyoto
guardavam entre as sobrancelhas pretas desgrenhadas.
Nas festas do Soho conheci línguas de ácido
que me lamberam a alma com os carinhos mais vorazes
e sob as luzes que piscam velozes no céu de Manhattan
perdi meus primeiros anos de maturidade, como um menino.
Mas onde encontrar
margaridas mais morenas
e palmeiras assim invencíveis?
Não planejo resistir a todos os vícios,
nem enfrentar todos os demônios de cara limpa
e mãos vazias.
Não conto os giros da terra.
Mas devia ter contado moedas e medos.
Sua falta hoje me condena, e eu sorrio.
Todo abismo merece um sorriso.
Os círculos de poesia no Leblon.
As rodas de samba em Madureira.
O peixe com molho de côco no Vietnam.
A aguardente cheirosa com larvas de cor fucsia
numa esquina de Tegucigalpa, debaixo da goiabeira.
A moça feia de Zurich, a boca vermelha, as coxas tectônicas,
a forma biônica dos seios pequenos sob a rubra sombra das macieiras.
Volto
sem perceber pertencimento.
- Em algum lugar no tempo
a minha terra não-prometida aguarda
esses meus ossos cansados de vagar. -
Nada lembrado pode ser mais cruel
que as memórias que inventamos.
[Mas onde encontrar
margaridas mais morenas
e palmeiras assim invencíveis?]
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