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sábado, 14 de junho de 2014

A SOLIDÃO DOS VENCEDORES




O pêlo dos ratos mortos era raspado com navalha, e queimado sobre uma lâmina de papel laminado. Aquelas cinzas, esfareladas entre os dedos dos meninos no escuro, tinham cheiro de morte, mas colocadas sobre a língua causavam o desconforto gostoso e angustiante do ópio. Alguns as cheiravam, o que aumentava o poder da convulsão. As pupilas dilatavam, pela boca dormente escorria a baba dos desvalidos, reis de terras distantes, onde apenas os moribundos poderiam pisar.
Raspávamos a cabeça dos fósforos não-deflagrados que encontrávamos no lixo ou roubávamos nos armazéns da cidade velha. Aquelas raspas eram o ouro vermelho do submundo. Uma pitada para cada copo de uísque, e tudo ficava melhor, a dor de cabeça mais forte, as pontas dos dedos sangrando por baixo das unhas e um peso de uma tonelada na nuca, por onde nasciam fios de prata indo direto aos céus.

As batatas doces esquecidas nas feiras e os talos de funcho eram guardados em latões de ferro. Eram antigas latas de querosene, que agora serviam para fazer o néctar do inferno. O líquido com cheiro forte, doce, enjoativo, vertido por um buraco no fundo do latão, era coado, depois fervido, o vapor capturado num pano de camisa, que era torcido após resfriado... Ah, vodka de batatas podres, quantos santos não foram convertidos por teu sabor de trovão e vulva, de ilusão e chuva?

Todos os dias nossas vassouras passeavam pelo teto das casas, pelos cantos entre as calhas, pelas esquinas dos móveis, por trás das penteadeiras dos patrões à procura das valiosas teias. Aquelas aranhas silenciosas, quase invisíveis, eram trabalhadoras incansáveis, graças a Deus. Suas teias, recolhidas com minúcia, valiam dois centavos por dia. Não gastávamos o dinheiro. Usávamos o níquel numa deliciosa sopa de teias, servida quentíssima, com um pouco de terra ou fezes secas de gato, para dar sabor. O comichão na boca descia até o estômago, e era possível sentir por onde o líquido passava em nosso corpo, causando tremores e febres, e saindo quase imediatamente pela uretra em chamas, a sensação deliciosa de gozo, a completude dos bastardos mais alegres do mundo.

De tempos em tempos, pegávamos uma pedra grande e martelávamos o mindinho do pé de quem perdesse alguma aposta. Não tanto por exigir o pagamento da mesma, mas porque o órgão gangrenado vertia líquidos preciosos, guardados para ocasiões especiais. Em dia de aniversário (ou de morte) bebíamos o suco dos dedinhos com a água do arroz lavado pela Srta. Piy, nossa benfeitora. Era nutritivo, refrescante, apesar de um visco renitente que durava dias grudado nas gengivas de todos.

Eram dias fabulosos, fantásticos, porque ninguém esperava nada além de um minuto após o outro, com o enorme talvez de um sol no dia seguinte. Olhávamos a aurora boreal através das frestas dos bueiros, e escondíamos nosso rosto com medo de ser a felicidade à nossa procura, talvez a esperança, quem sabe a fraqueza de imaginar outro presente, quem sabe a insensatez de pensar que haveria um futuro. As bocas banguelas sorriam, esperando que mais dentes caíssem. Os olhos secos miravam o chão, ignorando as promessas falsas do horizonte. Éramos os donos do mundo.

Alguns de nós sobrevivemos, escapamos, seguimos em frente, aprendemos a dormir em lençóis de seda, comer vitela, apertar no pescoço o nó da gravata, sorrir na foto.

Quão miseráveis são estes dias de opulência, meu Deus!

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