Corpo
meu querido fardo
tens sido infiel companheiro
já faz mais mais de trinta anos,
e ainda não nos entendemos.
Tuas curvas me iludem,
teus maciços vão se esfarelando no vão das horas
como as cordilheiras que se desfazem em pó
ao sabor do vento de qualquer monção.
Corpo
não me deixes ainda, pois estou ereto
tocando partes recém-descobertas
do meu eu-poeta.
Sei que erramos o caminho
mas só por isso encontramos contento
(pedindo paz, pedindo guerra, pedindo nuvem, pedindo terra)
todo corpo foi feito tanto para o gozo quanto para o lamento.
Corpo
amado amigo e carrasco
tens o peso exato das minhas vontades
e a leveza paquidérmica de todas verdades.
Teus sinuosos engenhos
jamais foram menos pungentes que o restante
de vida que me sobra em cada sonho não sonhado:
és ao mesmo tempo porto e navio naufragado.
Corpo
que de moços e moças fartou-se, faltou-se
na doce ausência de quem está mas não é:
és trovão e orvalho, corpo é chuva - corre deitado
e cai de pé -
No turbilhão da vida
seu tempo medido em ânforas de carbono animal
desenhou destinos variados, desdenhou recados
dados por deuses tolos e demônios sem pecado.
Corpo
logo chegaremos numa esquina qualquer
onde quiçá a morte, ou quem sabe outra sorte
nos colocará na gostosa presença da extinção
disfarçada num beijo de mulher.
No fim de tudo
saberei recomeçar, aceitar o divino convite
para não ser mais corpo, como faz a cigarra
que explode em mil cores (casulo-corpo-segredo)
para a incerta renovação do eu, mas não do ego.
[Todo corpo é uma guerra.
Só fora do corpo há sossego.]
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