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quinta-feira, 19 de junho de 2014

TODO CORPO É UMA GUERRA






Corpo

meu querido fardo

tens sido infiel companheiro 

já faz mais mais de trinta anos, 

e ainda não nos entendemos. 


Tuas curvas me iludem, 

teus maciços vão se esfarelando no vão das horas

como as cordilheiras que se desfazem em pó 

ao sabor do vento de qualquer monção.


Corpo

não me deixes ainda, pois estou ereto

tocando partes recém-descobertas 

do meu eu-poeta.


Sei que erramos o caminho

mas só por isso encontramos contento

(pedindo paz, pedindo guerra, pedindo nuvem, pedindo terra)

todo corpo foi feito tanto para o gozo quanto para o lamento.


Corpo

amado amigo e carrasco

tens o peso exato das minhas vontades

e a leveza paquidérmica de todas verdades.


Teus sinuosos engenhos

jamais foram menos pungentes que o restante

de vida que me sobra em cada sonho não sonhado:

és ao mesmo tempo porto e navio naufragado.


Corpo

que de moços e moças fartou-se, faltou-se

na doce ausência de quem está mas não é:

és trovão e orvalho, corpo é chuva - corre deitado

e cai de pé -


No turbilhão da vida

seu tempo medido em ânforas de carbono animal

desenhou destinos variados, desdenhou recados

dados por deuses tolos e demônios sem pecado.


Corpo

logo chegaremos numa esquina qualquer

onde quiçá a morte, ou quem sabe outra sorte 

nos colocará na gostosa presença da extinção 

disfarçada num beijo de mulher.


No fim de tudo

saberei recomeçar, aceitar o divino convite 

para não ser mais corpo, como faz a cigarra

que explode em mil cores (casulo-corpo-segredo)

para a incerta renovação do eu, mas não do ego.


[Todo corpo é uma guerra.

Só fora do corpo há sossego.]

 








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