[uma breve aventura pós-orgânica]
O corpo, esse tótem, tesouro e lixo.
Bicho alado, ao solo atado sem força.
Prezado, pesado, utensílio banal e maravilhoso.
Carrego-o no bolso, num fosso, num silêncio prolixo
em que o gozo é o martírio, e a dissonância dá sentido
a todo som.
Pra quê mostrar o homem pelado
se é na alma que ele está mais bem armado?
Por quê mostrar da mulher o peito, nádega e vulva
se é sua alma que nos afronta e nos cabe como luva?
Tenha calma,
muita calma nesta hora.
As palmas se acabam,
O espanto logo vai-se embora.
Sobram células-espelho
mirando o infinito de joelhos.
E o resto
presta-se aos trâmites, à praxe,
ao àxis involuntário da tua psiquê.
A aventura transhumana
da máquina que sonhou ser gente
e acordou poeta, não finda, não cessa:
substituímos em pressa a letra orgânica
por sintaxes de plástico, vidro, nióbio, cobre,
desenrola os cabos de fibra óptica pelas entranhas,
chamando a carne, outrora divina, agora apenas um sonho,
descartado pelo caminho da irreversível singularidade.
Em algum lugar de um futuro nem tão distante
uma nova Eva entregará aos desavisados filhos de Adão
aquela bendita fruta, rubra como um útero entumescido,
suculenta e perfumada, a linda maçã de metal.
O corpo é banal.
É comezinho, pobrezinho.
Dono do mundo, nosso primo pobre,
nosso nobre salvador, redentor moribundo.
Meu corpo é meu mundo.
Mas todo mundo ainda que vasto mundo
cabe num grão de areia, barquinho de aventureiro
navegando no turbilhão de nossas veias.
Todo santo dia o corpo
se transmuta da água para o vinho.
Todo corpo é porto de partida
e fim de caminho.
Tanto zelo
com o que dorme entre os pêlos.
Tanto pudor
com o que só traz a dor.
Mas, pra quê, Senhor?
Há artistas pelados na praça
como quem traz tomates para vender.
A pele rubra e brilhante atrai que por ali passa
mas, aos poucos, seu viço sucumbe, murcha,
o corpo exposto já não é arte, não é novidade,
os dias de feira-livre já se foram longe.
No mercado negro
está ficando difícil encontrar cicatrizes.
Uma pinta, uma marca de nescença, então...
Ser humano, só humano, está pela hora da morte.
Ou nem tanto,
pois de outra sorte não nos deixaríamos partir
sem antes pagar o equipamento: o corpo mais deles que nosso,
os rolos de ligamentos, os cabos e tubos, o coração sobressalente,
as peças de reposição, os upgrades no sistema, o titânio dos ossos.
Não há saída.
Mas se um santo
desabilitasse o firewall do Éden
poderiamos invadir para sempre
esses latifúndios divinos.
As palmas se acabam,
O espanto logo vai-se embora.
Sobram células-espelho
mirando o infinito de joelhos.
O avesso do avesso
é o lado certo, ou
a sua negação.
Pedra é pão.
Só que não.
Em algum lugar
de um futuro nem tão distante
uma nova Eva entregará aos desavisados filhos de Adão
aquela bendita fruta, rubra como um útero entumescido,
suculenta e perfumada, a linda maçã de metal.
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