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quinta-feira, 24 de julho de 2014

JOAQUIM, MEU FILHO




Joaquim, meu filho, tu que jamais irás nascer
sabe o quanto trabalhei por engendrar as potências do teu corpo
e pela doce consolação desta alminha de pássaro que não existe.
As bombas caem cegas no oriente e tu de nada sabes, nem saberás.
Os aviões desaparecem sobre os oceanos e tu não vês, nem nunca verá.
Nas grandes cidades há o engano, o crime, a solidão, o torpor, a malvasia.
Manifestantes protestam jogando bombas incendiárias por toda cidade,
derrubando as estátuas dos escritores que poderiam ser teus favoritos, 
mas tu, meu filho, que jamais leu os clássicos, nem jamais os lerá, 
não pode hoje derramar lágrima alguma por estes nossos heróis 
nem poderás tomar partido na luta das hienas e dos chacais 
que entre cervos e ovelhas levantam bandeiras coloridas
e pisam canteiros de rosas em sua marcha
em favor de poderes ocultos
e deuses mesquinhos.

Joaquim, meu filho, tu que jamais irás nascer
sabe o quanto sonhei com tuas mãos pequeninas
tocando meu rosto apagado, ouvindo minha voz indecisa
e ainda assim encontrando em mim o herói necessário
e o vilão precário que no fim da tarde te rouba o peito arfante
do calor de tua mãe, nossa palmeira invencível, que entre madeixas negras 
olha e não nos vê, posto que somos muitos em um só, um nascido e outro apenas sonhado, 
desesperado, ignorado, ambos interrompidos, dispersos, magoados
por palavras que ninguém disse, mas que mesmo assim ouvimos, 
percebemos entre as rimas de um poema 
que ninguém escreveu.

Joaquim, meu filho, 
as flores que não colhemos no jardim do vizinho
e os caminhos espinhosos onde jamais pisaremos,
os barcos a remo sob o luar desses trópicos de veraneio,
o recreio no pátio com meninos de gravata e meninas com laço de fita
nos cabelos com perfume de lilás e saias passadas com goma e minúcia
e os anúncios dos brinquedos japoneses na televisão no sábado
e os parques de diversão do subúrbio, o milho cozido,
a pipoca salgada, o algodão doce, o amendoim torrado,
o primeiro beijo no cinema, as fórmulas que resolvem
os teoremas inúteis, os livros de filosofia,
as economias escassas, o trabalho,
o casamento, os filhos, teus filhos,
meus netos, o círculo completo
que nunca se fechará.

Joaquim, meu filho, 
o poema épico, os grandes versos que jamais escreverei, 
entre as palmas que não me destinaram nestes salões imensos
sob holofotes apagados num domingo assentado fora do tempo,
meu filho, este poema não celebrado é o que te deixo por herança
junto com as contas que não pagarei, os carros que não dirigi,
as mulheres que não deflorei, os vícios jamais domados,
com o gosto dos beijos roubados em outonos vorazes
e as luzes das cidades enormes e pequenas
por onde passei e tu jamais passarás
meu filho, minha ilha, minha raiz,
meu tão aguardado fim,
meu bom Joaquim.

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