Ask Google Guru:

sábado, 31 de outubro de 2015

NO VÁCUO DAS BOMBAS




As palavras não ditas
ficaram grudadas - fina película -
naquela manhã ladrilhada 
de silêncios.

Os cães ladraram sem som, 
os pássaros passaram, porque é tudo 
o que sabem fazer por baixo do alvedrio 
das penas, das plumas e do canto.

Minhas mãos não procuraram 
novos engenhos, firulas, mesuras. 
Nenhuma ciência desembrulhou
mistérios perante meus olhos.

Não fiz poema.
Qualquer rima seria inútil. 
Desejei gritar, mas fui educado, 
magoado e forte, em vão.

Flácido, fluo.
De repente, tudo é fácil.
Calar, desistir, retroceder é possível.

Toda manhã é uma promessa, uma sentença.
Viver é um rio, e é preciso navegá-lo sempre
contra a corrente, pra longe do mar,
evitando as pedras escondidas 
pelas marés.

Minhas musas ousam
saber que já não quero tocá-las.
Uso um sorriso, depois outro.
Tenho mais alguns na gaveta.

Feérica, a hora certa não vem,
mas há minutos simples e quase bons,
feitos de pedra porosa, erva daninha,
pimenta caiena, mexericas mofadas,

morangos silvestres, nuvens de cimento,
sorrisos de criança, pontes inventadas,
o tempo bom e rasteiro dentro de um cigarro, 
uma xícara de café, um abraço, um olhar

por sobre os ombros,
talvez um beijo de lábio seco, 
um poema ruim, uma serpente emplumada,
qualquer jardim sem flor, qualquer versinho de amor.

Tudo o que não foi dito 
nessa manhã reluziu em festa solene,
azulejando nossos salões antes vazios,
agora povoados de silêncios festivos demais.

Guardemos então este momento
áspero e doce, pois a hora certa não virá
como o pássaro bonito, mas como o míssil
voraz e certeiro, sobre nossas cabeças.

Há paz no vácuo das bombas.
E as palavras não ditas ficarão grudadas 
- fina película - sobre a pele dos sobreviventes
nessas manhãs ladrilhadas de silêncios.

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

SALA ESCURA




A cena 
é recorrente - um arpão 
e seu ensejo: a ponta afiada 
de um olhar percebido no arpejo frio 
das retinas, tocaiando um alvo 
que se afasta mas 
não se move.

O metal da íris
embotado nas promessas 
da paisagem, desfaz com calma a firmeza 
das montanhas, os prédios desabam, as famílias, 
minha família desintegra-se no vento como as plumas
de um dente-de-leão, o pão compartilhado
no passado fica embolorado como
o carinho que a vida prática
engoliu, apressado,
bruto.

Por trás das cortinas,
na algazarra contida de um entreato,
mocinhos e bandidos sentam à mesma mesa
e se refestelam, mastigam de boca aberta
e riem alto, os bigodes falsos caindo
por um canto do rosto, malditos
sejam, benditos 
são.

Tento fazer 
um poema: minha métrica
é um soluço, o pensamento claudica
e corre, as rimas sobem escadas e caem 
em açapões, reaparecem tímidas, sorriem com
cara de choro, tentam novamente, e se estatelam de novo, 
dão uma cambalhota, fazem uma mesura para a plateia 
e seguem para a coxia fingindo que triunfaram, 
que são reais os aplausos da claque
num alto-falante quebrado.

O show tem que continuar.

Meu semblante de vilão
é refletido nos telões da metrópole:
falam de mim, sabem de mim, meu sangue
escorre na praça para o espetáculo dos pios,
um rio se forma, mas logo é canalizado,
domado, fadado ao subterrâneo
onde habito feliz, mas
pouco animado.

Temos champagne 
na cadeia, mas falta pão.

Recusei pisar
a cabeça daquela serpente,
chamei-a irmã, deixei que se aninhasse
entre os meus despojos, ofereci a ela
um refúgio, um pouco de sangue, 
outro tanto de mel: seus olhos 
luminosos e seu sorriso
carinhoso, apenas
betume e breu.

O cimento 
de minhas pálpebras
resolve as distâncias e as ausências
abarbando espaço e tempo num piscar de olhos.
Tudo é palco, por isso convém calar, fazer
um silêncio de vidro, e guardá-lo 
à sombra de um martelo.

A hora certa 
espera que haja carne e tempo
sob o manto da vontade, logo ali 
onde as verdades - e as vaidades -
descansam quase intactos, 
resumidos a pequeninas 
resmas de luz 
e escuridão.

Terceiro sinal: sala vazia.

A cena é recorrente -
jamais estamos sozinhos:
ao mirar, mesmo de soslaio, 
um ponto escuro qualquer na tela
entre as cortinas que vão se abrindo
a treva silente (pulsante) sempre 
olha de volta, sangrando, 
sorrindo.

sábado, 24 de outubro de 2015

MALDITO




Vamos festejar
os contratos não celebrados,
os heróis desacreditados, 
os vilões incompreendidos,
os bandidos acovardados,
os prudentes que estão falidos,
os cautelosos que foram pegos,
os amantes sem brilho nos olhos,
os amigos que não abraçam,
os padrinhos que não cuidam,
os pais que não amam,
os vivos que não morrem, 
os mortos que não descansam,
os pregos sem cabeça,
as tranças sem laço de fita,
os ritos sem compostura,
as missas sem fiéis,
os anéis sem dedos,
os brinquedos sem crianças,
os infantes sem inocência,
os irmãos sem fraternidade,
os palhaços sem graça,
os leões sem juba,
os crocodilos sem dentes,
os tubarões que se afogam,
os crentes que não oram, 
os cientistas delirantes,
os reis que imploram,
os juízes que não decidem,
as leis que não vigem,
os vigilantes que não enxergam,
os cobertores que não cobrem,
os cúmplices que não acobertam,
as mães que não se afligem,
os covardes que não fogem,
os tempos que não urgem,
os monstros que não rugem,
os ventos que não sopram,
os incêndios que não arrasam,
as casas que não protegem,
as primaveras sem flores,
os amores sem dor,
o labor sem cansaço,
o braço sem força,
o poço sem água,
a mágoa sem paixão,
o sim sem um não,
a mocinha sem um vilão,
os santos sem tentações,
as ações sem consequência,
as cobras sem veneno,
as águias sem penas,
e os poemas que não alumbram
o que dentro de nós é treva,
pó, deserto, silêncio
e sombra.

[Maldito, poeta, 
serás entre os seus.]

terça-feira, 13 de outubro de 2015

O LOBO


O lobo
respira suave
atrás da porta.

As unhas guardadas
na almofada de pelúcia
esperam, esperam.

A fera
que ainda não vejo
não tem pressa.

Por uma fresta
vaza a luz negra
daqueles olhinhos 
bonitos, pretos.

De repente,
um trovão, um murro,
um grito, um uivo,
uma baforada.

Meu amor 
abre a porta, 
pega minha mão:
sua presença 
me aquece.

Meu amor
abre a porta,
pega minha mão
e o lobo, esperto,
desaparece.

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

AHAB CANTA PARA A BALEIA BRANCA




A correnteza fere
o leito pardacento da lagoa.
O silêncio corre entre pedregulhos,
arrastando os trilhos da vontade,
trazendo no arrasto da manhã
cristais de conformação.

A lama pegajosa,
o arame, os cacos de vidro,
os casacos de lã, os anéis de vime,
as alianças de ouro (de tolo), os rolos
de fita crepe, as capas de cetim, o lume
dos meus olhos, as adagas e punhais 
perdidos, tudo é depositado 
na escuridão do espelho 
d'água.

As nódoas coloridas
refletem sentenças luminosas
no fluido fosco da líquida mortalha:
dias idos e tempos vindouros parecem
pedrinhas roladas, bonitas e sujas
como caramujinhos guardados
no fundo falso da minha 
calma.

Conto moedas,
escrevo poemas, coço a cabeça,
peço perdão, desejo bom dia, licença
senhor, licença senhora, reforço a moldura
dos bons hábitos, e dos maus também.
A lua enorme, o sol brincante,
o pássaro que voou, tudo
é motivo de alegria
e desespero.

Uma palmeira
balança os cabelos verdes
provando o gosto do vento que a machuca.
Os ipês amarelos definharam, desapareceram.
É primavera na prisão. Deixo que espalhem 
flores de sal sobre minhas feridas. 
A vida é boa,
afinal.

No meio de tanta beleza, 
não me encontro, mas sei que estou lá.
Meus espelhos se partiram antes, além-mar.
As naus, nuas, dançam. São baleias brancas, enormes, 
que ameaçam com carinho, e ensinam que cantar
não é preciso, mas é precioso 
o nosso cantar.

Repito,
é bom e útil repetir
porque assim me ensinou o mar.
As ondas repetem, repetem, refletem.
Que o poema, no escuro repita,
reflita. Cantar não é preciso,
mas é precioso, é precioso
o nosso cantar.

terça-feira, 6 de outubro de 2015

F(r)ESTA




Sobre a curva do lábio 
a fenda d'uma aurora.

A trave que segura 
teu riso de repente desaba. 

Cai.
Vai longe a lua, 

água turva deitada 
no caminho.

Há música
onde os brutos gritam.

Com o dedo anelar
risca um poema

no ar, na tarde
que te olha de joelhos.

De azul, fez-se vermelho
o olho vazado do firmamento.

És veloz, mas
morres de tédio.

Se pudesse, eu diria
em teus ouvidos caolhos

que invejo
tuas mãos cegas

tateando vias
tortas em minha escrita.

Gárrulas, garranchos.
Desce o pano,

mas um gancho
retém o poente, lindo.

Ainda é noite
sobre o oceano.

Finda
a dor, o que resta?

Um beijo 
na testa, um aceno

um rasgo
na jugular?

Julgo saber
menos que o pó

dos teus artelhos.
Tudo é comédia.

Uma boca desdentada
desdenha desfechos possíveis.

Reconheço
que por uma fresta

podemos escapar,
sobreviver, vencer.

Desço
à primeira esperança

sabendo que viver
é um enorme

baile de máscaras,
mas não uma festa.

Dai-me forças,
peço à moça que dorme

coçando feridas
imaginárias, dessas

que doem mais
quando amanhece.

Tudo é comédia.
Todo abismo

merece 
um sorriso.

És veloz, mas
morres de tédio:

teu destino
é terrível, mas

como é linda
a tua tragédia!





segunda-feira, 5 de outubro de 2015

SOBRE AS ÁGUAS



Algo
de mim na alga
que se deita sobre a água
afaga a maré que vaza
sem prazo.

O anzol
procura entre os sargaços
a carne, o cerne do peixe
que só por causa
do cansaço

do pescador
se deixa levar, fisgado,
mas não morto, o peito
rasgado de alegria
porque vai matar
em breve

a fome
de quem quer
que o leve embora
porque agora o peixe
é quem nos 
consome.

Alguma poesia
sobra, soçobra na alga
que devagar se deita e afaga
a pele de prata deste 
que morre:

correm 
as águas, morrem
os homens, e o espírito
de deus bóia sobre
as mágoas.

Reza a lenda
que é o sal da terra
que tempera os mares
e é o pó das montanhas
que tempera 
os ares.

Assim também 
é o sal da carne de quem 
morde os anzóis que dá sentido 
e sabor à carne 
que o tempo
rói.

O poeta 
tempera o cerne
de quem o consome
porque todos os pescadores
sabem que é o peixe 
quem come 
o homem.

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

ÍCARO ENTRE OS ESCOMBROS

Não escrevi o poema 
que no seio da madrugada crepita
debaixo de lençóis salpicados 
de estrelas de suor.

Não senhor, não escrevi 
sobre o homem negro gigante
cujo tempo roeu, acinzentou, perolou 
de brancas nuvens, depositando 
o calcário das horinhas banais 
desta vida nos cantinhos 
onde não se percebe, 
com sorte, 
a morte.

Não escrevi o verso triste 
nem a epopéia de festivas derrotas 
deste homem cuja presença é o sedimento 
paciente arrastado pela chuva e que na torrente 
se desfaz sem culpa nem mágoa
vertendo a si mesmo em águas 
misteriosas.

Não, o poema 
não chegou em tempo 
de colher o rosto flácido 
entre as mãos de um herói 
descrente, mas 
obstinado.

O meu poema 
crepita sem força, 
mas invencível no seio 
de uma noite 
calada.

Os tremores herdados, 
plantados em meus gametas
desfolham-se num gozo perverso
desperdiçado no gesto da pena breve
que risca em rubras tintas a sua prosa
mas nunca, nunca, nunca mais 
um verso.

No pêndulo afiado 
que trago sobre minha cabeça
brilha a gênese da minha extinção:
todo abismo merece um sorriso, precioso,
preciso, lançado à flor do vento 
com desdém e paixão.

Não escrevi o poema,
que desvendará o teu nome 
para a posteridade,
meu pai.

Estamos agora 
tão perto dele - o poema -
que já nem precisamos contá-lo.

A alvorada se aproxima. 
Veja como é linda e terrível 
a luz que se arrasta, pesada, 
por cima das encostas fustigadas 
pelos incêndios e maremotos 
comuns da nossa vida.

As rimas 
de um poema enorme
dormem num canto, numa gaveta,
e serão mastigadas em tempo breve
pelas traças, pelos destroços,
por essas ruínas que hoje 
te devoram e me 
esperam.

Não escreverei 
este poema. Minha voz
é demais, e o verso pede pouco.

Que minhas palavras 
se guardem em si mesmas, silenciosas 
como um vulcão adormecido, e tenham 
a paciência das flores nascidas 
no inverno.

Meus cadernos de menino
se perderam. Mas, em algum lugar 
um herói nascerá. 

N'algum momento 
- passado ou futuro, não importa - 
um homem enorme virá e me fará dormir 
o primeiro e eterno sono tranquilo, 
que me faz tanto sentido agora 
nessa noite longa 
e turbulenta.

Não 
escrevi o poema. 
Não o escreverei, 
ainda.

Na noite imensa
que já termina, as rimas crepitam 
como a luz dourada do sol fervendo 
o sal do mar de versos que a gente não diz 
na hora primeira - ou derradeira - 
em que enfim nos encontramos 
com nosso reflexo, 
perplexo.

Um herói, 
um gigante de cera
derrete-se com calma
sob a luz de uma alvorada 
veloz.

Ícaro 
entre os escombros
desdenha e rí do próprio
tombo.

Percebo 
o brilho dos seus olhos
no pêndulo afiado desta hora
que sobre minha cabeça
balança.

O passado 
olha para frente
mirando miragens 
no espelho.

Aquele homem, 
negro, enorme, agora é a sombra 
compacta e branca que numa gaveta 
ou em meus gametas
descansa.

Versar 
já não vale à pena.
Deixemos descansar 
nessa esplêndida e frágil paz
os heróis ignorados pelos nossos 
melhores (ou piores) 
poemas.