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quarta-feira, 6 de abril de 2016

TODO DOMINGO É DIA





Todo dia é domingo?

Para que o seja, é preciso ter pai, 
mãe, conta em banco, livro de poesia
do último e obscuro autor albanês, emprego 
em repartição pública, bandeira pronta para passeata, 
carro bom, lavado para carreata, tia que faz compota,
camisa branca, quadro na parede, cachorrinha
chamada Lulu que adore farinha láctea
e pão-de-ló, discos do Miles, e ser
funcionário do mês, ao menos
uma vez por ano.

É domingo novamente,
mas não de novo.

O tempo embaralha
meus atos de coragem,
tratos-falhos, o destino
das coisas feias e belas.

N'algum canto longe
do meu pranto descansam
minha mãe, meu pai e meu filho.
Já não tenho a sombra da sua umbrela
a garantir meu orgulho, minha exatidão
perante um mundo que gira, gira, gira
e não sai do lugar.

Minhas ventanelas
abrem-se para um sol 
que machuca, antes de acariciar.
Prometem-me mortes lindas depois
desta morte, o que deve ser uma sorte
grande, o bilhete premiado
mas não desejado.

Poemas, poemas...bah!
São sempre os mesmos: asa
de vidro, de mariposa, de coisa
que só existe quando quer, jamais
quando pode.

É à sombra do machado
que insiste em nascer a flor
mais linda, a erva mais 
perfumada.

Enquanto isso
pagam minha poesia
com um aplauso tímido,
não com pão, brioche, 
por que isso não
pode.

Casa verso vai valendo
o fio de um bigode.

Segue a missa.

Mortos, ou jamais nascidos, 
brilham escondidos na luz impávida
que trago por trás desses olhos ambarinos
embotados por tanto vagar pelas terríveis 
maravilhas deste mundo.

Num piscar de asas 
um tempo sem prazo escorre 
entre os dedos de deus, suprema graça,
quando todos os trovões e relâmpagos se condensam
e a eternidade (mero detalhe) desfaz-se em paz,
em pó, em igrejas feitas de carne, osso
e solidão.

Apenas eu, 
que ainda sou feio, finito,
e cansado, resisto.

Todos os sinos são 
a promessa do som sobre
o ventre oco do cobre, repetindo na missa
o que um bicho -talvez alado- sonha dentro
de um poema, uma salmodia, ou um ovo:
é domingo, hoje é domingo 
novamente, mas não 
de novo.

sexta-feira, 25 de março de 2016

RECOMEÇO



 É preciso passar graciosamente 
entre os escombros esquecendo 

(talvez) a rima: que tudo, tudo seja
como o facho que arde e ilumina, 

maravilhoso como a luz que beija
a face rubra de quem está para morrer

ou a escuridão tranquila 
que desafoga aquele que nasce
mesmo sem querer,

qualquer favela carioca 
tenha os becos dourados de Roma, 
em qualquer ladeira 

as lajes prateadas de Paris, 
todo morro, toda baixada, as colinas 
nevadas do Japão,

toda flor murcha 
sob nossos pés seja linda
como a rosa entre a ti, amor, 
por outras mãos,

e toda pedra maldita,  
toda rocha de tropeço
seja o pódio em que uma glória 
magoada, dolorida, 

reflita a boa hora 
em que receberemos, triunfantes,
entre lágrimas e aplausos a força divina 
do recomeço.

A HORA ÚLTIMA



Não sou eu,
isto que temos o costume
de chamar de meu, meu, meu,
ainda que sob um estranho véu
de carne e sonho, de sombra 
e som, e sol, e só.

Senão, só
estes olhos, dispersos,
ventanelas semicerradas
segurando a hora última, íntima, 
como um facho vertiginoso 
a queimar o tempo
antes do sono.

Durmo?
É preciso morrer
aos poucos, sorrir aos poucos,
e ver, observar, deslumbrando-se
devagar com tudo o que se perde
diante do primeiro olhar.

É uma pena
a gente se gastar tanto
gostando tão pouco
uns dos outros.

Durmo.
Uma torre de marfim
que arde esplendidamente
no horizonte crepuscular
me acena, e eu
não vejo.

Vivo.

Os ratos cantam,
contam segredos,
fazem dos gatos seus
brinquedos, tocam jazz,
declamam poemas, oram, 
pedem a Deus que salve
suas almas pequenas,
e riem do próprio
destino.

Vejo.

Até mesmo os ratos
tem seus propósitos,
seus ritos.

Viver requer
uma coragem matreira
e uma alegria cega como faca
de açougueiro.

Estou feliz
e finito.

Cada minuto
de calma, na fotografia,
parece uma festa de cegos
lambendo celulóides
de cromo.

Tomo um gole
da água ardente deste oceano
e o ouro de tuas lágrimas decora,
emoldura essa hora, ou ao menos
este minuto.

Estou feliz
pois sou forte
e finito.

Sonho.

Não desperdiço bemóis
em meu canto, nem meu latim
poderia transbordar em poemas
sem uso, coisa pré-fabricada,
como casa de marimbondo.

Todo animal de asas
conhece, antes do voo,
o tombo.

Há de se ter esperança
e desesperar sem pressa
quando preciso for
seja em guerra,
em paz, ou 
pior - no
amor.

Espero.
Vigio.

Tudo no mundo
só é bom sem querer.

Não sou eu
quem diz, quem usa
o verso, quem escolhe
(acolhe) isto que chamamos
meu, meu, meu... mas o breu
desta íris é um aconchego,
facho de vida 

que passa devagar
como o próton fugidio, 
fruto maduro que sobra
da fissão d'um átomo 
de carbono:

meus olhos 
pesados, abertos como
ventanelas semicerradas, 
nesta hora última, íntima, 
ínfima, que me embala
antes do sono.

PONTEIO II



Venho à beira de ti,
meu mar, testar meu canto,
resfolegar como que em prantos,
tentando, na verdade, tornar
imperceptível, impenetrável
a minha respiração, como
se morto eu pudesse
ainda, ao sabor
das marés
dançar.

Vim, meu mar,
dizer que cantar o azul
é voltar, e voltar, e voltar
sem sair do lugar: saber
que a gente acaba, e esquece
que as ondas vem, e voltam, e
vem, as ondas, as ondas, a gente
se vai, de repente morre, mas não
desaparece.

Venho à beira deste mar
deixar meu corpo fluir, pesar
sobre as águas, como se mágoa
alguma pudesse nos vencer, machucar,
porque é enorme, imensa a alma de quem
com calma souber viver, morrer, viver,
morrer, e com pés de sereia 
flutuar.

Basta saber
que tudo (e nada)
é definitivamente vigente:
a gente vive, sobrevive, cala
e canta, pranteia um ponteio
bonito, como o volteio do pescador
a pentear a rede que se irá lançar
à caça do peixe bom, do tom,
da cantiga mais antiga que 
a fome do homem, que
o deus que consome
com calma a nossa
alma...

- ter esperança, 
saber esperar por outra vida, 
talvez melhor, talvez diferente, 
com outro corpo, com outras
gentes, num poente que raia,
num nascente que caia,
na semente que saia
num outro canto
no mesmo 
mar.

PONTEIO





Aceitemos as rosas
e seus espinhos.
As pedras e
os caminhos.
A palmeira
e a erva 
daninha.

O hálito, o respiro,
o oxigênio queimando
na sagrada pira, e o mundo
que roda, roda, dá voltas,
mas não gira: o mundo
pára, estaca, olha, mira,
mas não vê.

O inferno, 
o eterno, o outro,
o estrangeiro 
e você. O teatro
dos vampiros,
os tiros na tevê.

A paixão 
e a rotina.
O afago, a repulsa.
Andrômeda, Cassiopéia,
mas também Teseu e a Ursa
Maior. O gozo, esposo 
da dor.

Os bandolins
e os violões.
Um sim
com muitos senões.
Os turcos, os mandarins,
americanos e alemães.
As fadas, o fado.
As palmas
e os safanões.
Os santos
e os sãos.

As tintas
e os borrões.
Os sonhos
e as manhãs.
As dentaduras,
as maçãs.
As nações
e as guerras.
A terra,
as cercas.
Os gatos
nos becos.
O cinza,
o branco e
o preto.

Os poetas
e essa desesperança
festiva, quase alegre,
regada à palavra
e por ela ferida
mortalmente.

E o verso
semi-novo, o ovo
do filósofo, o magma,
o gelo, o feio, o mais
feio, e o belo, na berlinda,
a linda flor
no prelo.

O sopro 
empurrado pelo
diafragma, o canto, 
o pranto e o confete,
a festa, o texto,
o poema, este 
poema, esse 
versinho, essa trova,
pó, carvão, diamante,
pólvora.

A coisa
nova, o refrão,
o poema, ah esse 
poema que se repete
e se repete novamente,
tão ruim, tão bonito,
tão aflito, tão valente,
repetindo, repetindo,
repetido (...)
mortalmente.

quinta-feira, 17 de março de 2016

DOZE SUSTOS






#1

Na tempestade
onde dormem
as borboletas?

#2

Sob a neve
queimam secretamente
os vaga-lumes.

#3

No espelho d'água
as libélulas penteiam 
seus cabelos.

#4

Nas paixões
toda a razão
é como o orvalho.

#5

Olhar
de muito perto
arranha o objeto.

#6

Os baobás
são velozes
como as montanhas.

#7

Troveja
ou Deus
pestaneja?

#8

Pise flores,
mate os homens
e faça poemas.

#9

A rã
saltando na poça
inaugura a manhã.

#10

Os deuses
não matam mais,
mas ( )

#11

As montanhas
não fugirão
jamais.

#12

Na tempestade
as borboletas
dormem.

segunda-feira, 14 de março de 2016

A SOMBRA DO SER E A CENTELHA DO POEMA




O poema não resiste
ao medo do minuto seguinte,
à flacidez da carne, ao desemprego,
ao vinho demais, ao dedo que acusa,
ao verbo que malogra, à frase que,
guardada com cuidado, escapa
com dolorosa minúcia
no meio da noite
estilhaçando
taças

e sonhos.
O poema não resiste
ao momento em que, lúcido,
o amor desiste, cansa, procura
um canto escuro, guarda o rosto
evitando a luz de um olhar que antes
alumbrava, alegrava, mas agora
anuncia tempestades, acende
luzes fortes num salão
de nús grotescos,
que se julgavam
belos.

O poema
não resiste.
Por isso, não ames
como quem faz poesia.
Porque poesia é bruma,
fumaça branca, a asa vítrea
da libélula, o metal brilhante
dos olhos das moscas, o ouro
que aos poucos verdeja nas ervas
e depois vira um ocre pálido
que feliz anuncia a sua
morte, sorte única
de tudo o que 
é vivo.

O vento 
que conversa entre 
as maçãs, o açúcar na ponta 
do ferrão das abelhas, a prece que 
não se precisa fazer de joelhos, o passo 
de dança à beira do abismo, os engenhos
secretos, higiênicos, ternos, do corpo 
preparando-se para amar ou para 
morrer, para o sexo ou para
a morte, o sexo, a morte, 
esta sorte.

O poema não 
resiste ao cimento
e ao ferro, ao pão de cada
dia, ao remendo na calça, ao
despertador das cinco da matina,
à repórter bonita na tevê, ao amigo
bem-sucedido, ao dia de limpar latrinas,
levar o lixo para fora, a conta de luz e gás,
a paz dos vizinhos, não resiste à aguardente
que rasga as finas vestes do juízo, à festa 
que nos empobrece  a alma, bendita,
trazendo espelhos rente o nosso 
rosto, revelando a feiura 
do outro, pobre poema, 
suas mãos vazias 
pouco podem, 
nada podem, 
não 

evitam perdas 
e danos, não resolvem
os problemas do cotidiano,
não libertam, nem despertam
na gente qualquer centelha divina
escondida talvez entre as cinzas da 
rima, porque a poesia não nos salva 
de amar sendo isto que somos: 
irremediavelmente
humanos.

terça-feira, 8 de março de 2016

ORA PRO NOBIS




Desço 
escadas imaginárias
no escuro.

Procuro
o cheiro verde-metálico
das rúculas selvagens,
das vulvas virgens,
da fuligem dos 
corpos,

das campinas devoradas
pelo cimento que arranhará os céus,
dos campos com a grama orvalhada
e dos santos mofados na sombra 
silenciosa de uma igreja
vazia, terrivelmente
vazia.

Desço
a ladeira do poema
em pleno meio-dia.

Queria
provar o sol que molha 
de luz as tangerinas, as romãs,
enquanto a manhã apodrece
resplendendo nos olhos
dos peixes da feira.

As roseiras
mastigadas pelos olhos
das moças, os dentes-de-leão
em chamas, na foz de uma tarde
qualquer, num verão violento, impiedoso, 
onde milagres são desperdiçados
com uma alegria torta
e desdentada.

Desço
esta vida inteira
à procura de algo que me valha
um sorriso, uma lágrima, uma gota
de suor, um piscar de olhos,
um gesto, um punho cerrado,
um espalmar de mãos, 
uma oração, mas não 
acho.

O facho
que me foge 
vige no oculto, 
no distante, no insofismável, 
naquilo que não possuo nem 
entendo, mas continua sendo, ou 
melhor, insiste em ser meu: 
eis que no poema 
te escondo 

e tu me guardas, 
meu fim, meu começo, 
esse estranho verso 
- meu Deus.