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segunda-feira, 14 de março de 2016

A SOMBRA DO SER E A CENTELHA DO POEMA




O poema não resiste
ao medo do minuto seguinte,
à flacidez da carne, ao desemprego,
ao vinho demais, ao dedo que acusa,
ao verbo que malogra, à frase que,
guardada com cuidado, escapa
com dolorosa minúcia
no meio da noite
estilhaçando
taças

e sonhos.
O poema não resiste
ao momento em que, lúcido,
o amor desiste, cansa, procura
um canto escuro, guarda o rosto
evitando a luz de um olhar que antes
alumbrava, alegrava, mas agora
anuncia tempestades, acende
luzes fortes num salão
de nús grotescos,
que se julgavam
belos.

O poema
não resiste.
Por isso, não ames
como quem faz poesia.
Porque poesia é bruma,
fumaça branca, a asa vítrea
da libélula, o metal brilhante
dos olhos das moscas, o ouro
que aos poucos verdeja nas ervas
e depois vira um ocre pálido
que feliz anuncia a sua
morte, sorte única
de tudo o que 
é vivo.

O vento 
que conversa entre 
as maçãs, o açúcar na ponta 
do ferrão das abelhas, a prece que 
não se precisa fazer de joelhos, o passo 
de dança à beira do abismo, os engenhos
secretos, higiênicos, ternos, do corpo 
preparando-se para amar ou para 
morrer, para o sexo ou para
a morte, o sexo, a morte, 
esta sorte.

O poema não 
resiste ao cimento
e ao ferro, ao pão de cada
dia, ao remendo na calça, ao
despertador das cinco da matina,
à repórter bonita na tevê, ao amigo
bem-sucedido, ao dia de limpar latrinas,
levar o lixo para fora, a conta de luz e gás,
a paz dos vizinhos, não resiste à aguardente
que rasga as finas vestes do juízo, à festa 
que nos empobrece  a alma, bendita,
trazendo espelhos rente o nosso 
rosto, revelando a feiura 
do outro, pobre poema, 
suas mãos vazias 
pouco podem, 
nada podem, 
não 

evitam perdas 
e danos, não resolvem
os problemas do cotidiano,
não libertam, nem despertam
na gente qualquer centelha divina
escondida talvez entre as cinzas da 
rima, porque a poesia não nos salva 
de amar sendo isto que somos: 
irremediavelmente
humanos.

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