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sexta-feira, 25 de março de 2016

RECOMEÇO



 É preciso passar graciosamente 
entre os escombros esquecendo 

(talvez) a rima: que tudo, tudo seja
como o facho que arde e ilumina, 

maravilhoso como a luz que beija
a face rubra de quem está para morrer

ou a escuridão tranquila 
que desafoga aquele que nasce
mesmo sem querer,

qualquer favela carioca 
tenha os becos dourados de Roma, 
em qualquer ladeira 

as lajes prateadas de Paris, 
todo morro, toda baixada, as colinas 
nevadas do Japão,

toda flor murcha 
sob nossos pés seja linda
como a rosa entre a ti, amor, 
por outras mãos,

e toda pedra maldita,  
toda rocha de tropeço
seja o pódio em que uma glória 
magoada, dolorida, 

reflita a boa hora 
em que receberemos, triunfantes,
entre lágrimas e aplausos a força divina 
do recomeço.

A HORA ÚLTIMA



Não sou eu,
isto que temos o costume
de chamar de meu, meu, meu,
ainda que sob um estranho véu
de carne e sonho, de sombra 
e som, e sol, e só.

Senão, só
estes olhos, dispersos,
ventanelas semicerradas
segurando a hora última, íntima, 
como um facho vertiginoso 
a queimar o tempo
antes do sono.

Durmo?
É preciso morrer
aos poucos, sorrir aos poucos,
e ver, observar, deslumbrando-se
devagar com tudo o que se perde
diante do primeiro olhar.

É uma pena
a gente se gastar tanto
gostando tão pouco
uns dos outros.

Durmo.
Uma torre de marfim
que arde esplendidamente
no horizonte crepuscular
me acena, e eu
não vejo.

Vivo.

Os ratos cantam,
contam segredos,
fazem dos gatos seus
brinquedos, tocam jazz,
declamam poemas, oram, 
pedem a Deus que salve
suas almas pequenas,
e riem do próprio
destino.

Vejo.

Até mesmo os ratos
tem seus propósitos,
seus ritos.

Viver requer
uma coragem matreira
e uma alegria cega como faca
de açougueiro.

Estou feliz
e finito.

Cada minuto
de calma, na fotografia,
parece uma festa de cegos
lambendo celulóides
de cromo.

Tomo um gole
da água ardente deste oceano
e o ouro de tuas lágrimas decora,
emoldura essa hora, ou ao menos
este minuto.

Estou feliz
pois sou forte
e finito.

Sonho.

Não desperdiço bemóis
em meu canto, nem meu latim
poderia transbordar em poemas
sem uso, coisa pré-fabricada,
como casa de marimbondo.

Todo animal de asas
conhece, antes do voo,
o tombo.

Há de se ter esperança
e desesperar sem pressa
quando preciso for
seja em guerra,
em paz, ou 
pior - no
amor.

Espero.
Vigio.

Tudo no mundo
só é bom sem querer.

Não sou eu
quem diz, quem usa
o verso, quem escolhe
(acolhe) isto que chamamos
meu, meu, meu... mas o breu
desta íris é um aconchego,
facho de vida 

que passa devagar
como o próton fugidio, 
fruto maduro que sobra
da fissão d'um átomo 
de carbono:

meus olhos 
pesados, abertos como
ventanelas semicerradas, 
nesta hora última, íntima, 
ínfima, que me embala
antes do sono.

PONTEIO II



Venho à beira de ti,
meu mar, testar meu canto,
resfolegar como que em prantos,
tentando, na verdade, tornar
imperceptível, impenetrável
a minha respiração, como
se morto eu pudesse
ainda, ao sabor
das marés
dançar.

Vim, meu mar,
dizer que cantar o azul
é voltar, e voltar, e voltar
sem sair do lugar: saber
que a gente acaba, e esquece
que as ondas vem, e voltam, e
vem, as ondas, as ondas, a gente
se vai, de repente morre, mas não
desaparece.

Venho à beira deste mar
deixar meu corpo fluir, pesar
sobre as águas, como se mágoa
alguma pudesse nos vencer, machucar,
porque é enorme, imensa a alma de quem
com calma souber viver, morrer, viver,
morrer, e com pés de sereia 
flutuar.

Basta saber
que tudo (e nada)
é definitivamente vigente:
a gente vive, sobrevive, cala
e canta, pranteia um ponteio
bonito, como o volteio do pescador
a pentear a rede que se irá lançar
à caça do peixe bom, do tom,
da cantiga mais antiga que 
a fome do homem, que
o deus que consome
com calma a nossa
alma...

- ter esperança, 
saber esperar por outra vida, 
talvez melhor, talvez diferente, 
com outro corpo, com outras
gentes, num poente que raia,
num nascente que caia,
na semente que saia
num outro canto
no mesmo 
mar.

PONTEIO





Aceitemos as rosas
e seus espinhos.
As pedras e
os caminhos.
A palmeira
e a erva 
daninha.

O hálito, o respiro,
o oxigênio queimando
na sagrada pira, e o mundo
que roda, roda, dá voltas,
mas não gira: o mundo
pára, estaca, olha, mira,
mas não vê.

O inferno, 
o eterno, o outro,
o estrangeiro 
e você. O teatro
dos vampiros,
os tiros na tevê.

A paixão 
e a rotina.
O afago, a repulsa.
Andrômeda, Cassiopéia,
mas também Teseu e a Ursa
Maior. O gozo, esposo 
da dor.

Os bandolins
e os violões.
Um sim
com muitos senões.
Os turcos, os mandarins,
americanos e alemães.
As fadas, o fado.
As palmas
e os safanões.
Os santos
e os sãos.

As tintas
e os borrões.
Os sonhos
e as manhãs.
As dentaduras,
as maçãs.
As nações
e as guerras.
A terra,
as cercas.
Os gatos
nos becos.
O cinza,
o branco e
o preto.

Os poetas
e essa desesperança
festiva, quase alegre,
regada à palavra
e por ela ferida
mortalmente.

E o verso
semi-novo, o ovo
do filósofo, o magma,
o gelo, o feio, o mais
feio, e o belo, na berlinda,
a linda flor
no prelo.

O sopro 
empurrado pelo
diafragma, o canto, 
o pranto e o confete,
a festa, o texto,
o poema, este 
poema, esse 
versinho, essa trova,
pó, carvão, diamante,
pólvora.

A coisa
nova, o refrão,
o poema, ah esse 
poema que se repete
e se repete novamente,
tão ruim, tão bonito,
tão aflito, tão valente,
repetindo, repetindo,
repetido (...)
mortalmente.

quinta-feira, 17 de março de 2016

DOZE SUSTOS






#1

Na tempestade
onde dormem
as borboletas?

#2

Sob a neve
queimam secretamente
os vaga-lumes.

#3

No espelho d'água
as libélulas penteiam 
seus cabelos.

#4

Nas paixões
toda a razão
é como o orvalho.

#5

Olhar
de muito perto
arranha o objeto.

#6

Os baobás
são velozes
como as montanhas.

#7

Troveja
ou Deus
pestaneja?

#8

Pise flores,
mate os homens
e faça poemas.

#9

A rã
saltando na poça
inaugura a manhã.

#10

Os deuses
não matam mais,
mas ( )

#11

As montanhas
não fugirão
jamais.

#12

Na tempestade
as borboletas
dormem.

segunda-feira, 14 de março de 2016

A SOMBRA DO SER E A CENTELHA DO POEMA




O poema não resiste
ao medo do minuto seguinte,
à flacidez da carne, ao desemprego,
ao vinho demais, ao dedo que acusa,
ao verbo que malogra, à frase que,
guardada com cuidado, escapa
com dolorosa minúcia
no meio da noite
estilhaçando
taças

e sonhos.
O poema não resiste
ao momento em que, lúcido,
o amor desiste, cansa, procura
um canto escuro, guarda o rosto
evitando a luz de um olhar que antes
alumbrava, alegrava, mas agora
anuncia tempestades, acende
luzes fortes num salão
de nús grotescos,
que se julgavam
belos.

O poema
não resiste.
Por isso, não ames
como quem faz poesia.
Porque poesia é bruma,
fumaça branca, a asa vítrea
da libélula, o metal brilhante
dos olhos das moscas, o ouro
que aos poucos verdeja nas ervas
e depois vira um ocre pálido
que feliz anuncia a sua
morte, sorte única
de tudo o que 
é vivo.

O vento 
que conversa entre 
as maçãs, o açúcar na ponta 
do ferrão das abelhas, a prece que 
não se precisa fazer de joelhos, o passo 
de dança à beira do abismo, os engenhos
secretos, higiênicos, ternos, do corpo 
preparando-se para amar ou para 
morrer, para o sexo ou para
a morte, o sexo, a morte, 
esta sorte.

O poema não 
resiste ao cimento
e ao ferro, ao pão de cada
dia, ao remendo na calça, ao
despertador das cinco da matina,
à repórter bonita na tevê, ao amigo
bem-sucedido, ao dia de limpar latrinas,
levar o lixo para fora, a conta de luz e gás,
a paz dos vizinhos, não resiste à aguardente
que rasga as finas vestes do juízo, à festa 
que nos empobrece  a alma, bendita,
trazendo espelhos rente o nosso 
rosto, revelando a feiura 
do outro, pobre poema, 
suas mãos vazias 
pouco podem, 
nada podem, 
não 

evitam perdas 
e danos, não resolvem
os problemas do cotidiano,
não libertam, nem despertam
na gente qualquer centelha divina
escondida talvez entre as cinzas da 
rima, porque a poesia não nos salva 
de amar sendo isto que somos: 
irremediavelmente
humanos.

terça-feira, 8 de março de 2016

ORA PRO NOBIS




Desço 
escadas imaginárias
no escuro.

Procuro
o cheiro verde-metálico
das rúculas selvagens,
das vulvas virgens,
da fuligem dos 
corpos,

das campinas devoradas
pelo cimento que arranhará os céus,
dos campos com a grama orvalhada
e dos santos mofados na sombra 
silenciosa de uma igreja
vazia, terrivelmente
vazia.

Desço
a ladeira do poema
em pleno meio-dia.

Queria
provar o sol que molha 
de luz as tangerinas, as romãs,
enquanto a manhã apodrece
resplendendo nos olhos
dos peixes da feira.

As roseiras
mastigadas pelos olhos
das moças, os dentes-de-leão
em chamas, na foz de uma tarde
qualquer, num verão violento, impiedoso, 
onde milagres são desperdiçados
com uma alegria torta
e desdentada.

Desço
esta vida inteira
à procura de algo que me valha
um sorriso, uma lágrima, uma gota
de suor, um piscar de olhos,
um gesto, um punho cerrado,
um espalmar de mãos, 
uma oração, mas não 
acho.

O facho
que me foge 
vige no oculto, 
no distante, no insofismável, 
naquilo que não possuo nem 
entendo, mas continua sendo, ou 
melhor, insiste em ser meu: 
eis que no poema 
te escondo 

e tu me guardas, 
meu fim, meu começo, 
esse estranho verso 
- meu Deus.

domingo, 6 de março de 2016

QUASAR



A chama verde-azulada
- que em verdade é feita de noventa 
e oito mil tons de vermelho -
aos poucos se apaga, esplêndida
como a estrela que vemos agora
no oceano lívido da Via Láctea
ou melhor, nos seus 
arredores.

No centro, seu umbigo
negro engole matéria e tempo.
Seu coração rubro pulsa cansado
dentro de um cofre de carne, osso 
e fé.

Estamos vivos.
É esplêndida e sombria
esta nossa condição.

As pálpebras pesadas
dos homens degolam
os caules tenros
das manhãs.

É bom 
não negar os engenhos
deste mundo: somos todos
engrenagens cuja ferrugem
atinge mais a uns e menos
a outros.

Existir é pouco.
É preciso ser feliz.

Plantei muitos relicários
dentro da noite, sob tempestades,
entre ramas de pedra calcária,
flores de vidro colorido, dolorido,
aguardando festas, tragédias,
silêncios não proclamados
e gritos jamais recolhidos.

Quero viver
mais um pouco
ao lado de quem me ama
em vão.

Tão logo eu me apague,
tragam seus olhos para o campo
e procurem vestígios, vivos, 
de que morri.

Não encontrarão
mais que estrelas, milhares
delas, fulgurantes como olhares
desviados de um desastre, de
repente.

Sorrir
é o trabalho, o exercício,
o vício necessário a cada dia.
Há uma alegria nervosa embrulhada
no papel pardo do poema.

A chama verde-azulada
esplêndida como a estrela 
que vemos agora, com calma
se apaga no oceano lívido 
da Via Láctea, ou melhor,
longe dos seus olhares.

Cansado,
o miolo de luz pulsa
insistente, tão brilhante, dentro 
de um cofre de carne, osso e fé:
meu coração.

Todos os olhares
desviam-se, depois voltam
curiosos, furiosos, as órbitas
vazadas de paixão.

Quero viver
mais um pouco, e sorrir
o riso trabalhoso de cada dia
ao lado de quem me ama
em vão.





sexta-feira, 4 de março de 2016

HIDRA




Aceitemos as rosas
e seus espinhos.
As pedras e
os caminhos.
A palmeira
e a erva 
daninha.

O hálito, o respiro,
o oxigênio queimando
na sagrada pira, e o mundo
que roda, roda, dá voltas,
mas não gira: o mundo
pára, estaca, olha, mira,
mas não vê.

O inferno, 
o eterno, o outro,
o estrangeiro 
e você.
O teatro
dos vampiros,
os tiros na tevê.

A paixão
e a rotina.
O afago,
a repulsa.
Andrômeda, Cassiopéia,
mas também Teseu e a Ursa
Maior. O gozo, esposo 
da dor.

Os bandolins
e os violões.
Um sim
com muitos senões.
Os turcos, os mandarins,
americanos e alemães.

As fadas,
o fado.
As palmas
e os safanões.
Os santos
e os sãos.

As tintas
e os borrões.
Os sonhos
e as manhãs.
As dentaduras,
as maçãs.

As nações
e as guerras.
A terra,
as cercas.
Os gatos
nos becos.
O cinza,
o branco e
o preto.

Os poetas
e essa desesperança
festiva, quase alegre,
regada à palavra
e por ela ferida
mortalmente.

E o verso
semi-novo, o ovo
do filósofo, o magma,
o gelo, o feio, o mais
feio, e o belo, na berlinda,
a linda flor
no prelo.

O sopro 
empurrado pelo
diafragma, o canto, 
o pranto e o confete,
a festa, o texto,
o poema, este 
poema, esse 
versinho, essa trova,
pó, carvão, diamante,
pólvora, o refrão,
o poema, ah esse 
poema que se repete
e se repete novamente,
tão ruim, tão bonito,
tão aflito, tão valente,
repetindo, repetindo,
repetido (...)
mortalmente.

terça-feira, 1 de março de 2016

O UMBIGO







Talvez 
eu esteja morto 
como a luz que beija
 a pele fria de uma estrela anã
ou deveras torto, torto como a linha reta  
outrora traçada pelo pincel de um holandês 
apaixonado, de orelha cortada, afogado em azuis 
de cobalto coruscante e amarelos pungentes,
rascantes, deliciosos como a maçã mordida
por um casal de bobos, expulsos 
do paraíso, naquela (nesta)
manhã prateada, congelada
no dedo (de deus, esperto)
que aponta o deserto
e com carinho
condena.

Talvez
a pena que escreve
persiga a pena que se paga
ao fazer o poema: nada, nada
pode perdoar essa nossa falha.
Sonhei com o umbigo ambíguo
de uma quase amiga, a tez branca
salpicada de estrelinhas coradas
e nas entrelinhas (proibidas)
a palavra dada, oferecida
com a relutância franca
de quem faz uma prece
pedindo pressa, muita
pressa aos deuses
- que voltem logo
mas não agora.