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quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

O AMANHECER NA ILHA DOS TORTOS

  



Naquela noite de Natal ouvi sinos tocarem e achei que estava tendo um pesadelo. Acordei brevemente, olhei o céu ainda escuro e imaginei que Deus estava dormindo debaixo d'uma colcha rosada de nuvens. Eu podia ver passar os cummulus nimbus cor-de-rosa em plena noite sem estrelas, e sabia que alguma tragédia estava sendo engendrada no porvir, como teia de aranha armada com zelo e requintes de crueldade. Teia: ninho e armadilha. Encanto! Eis a palavra: encanto. Talvez o amor brotasse como flor noturna, de um perfume enjoativo e inebriante, como a tragédia que liberta. Talvez. Não confio em remédios que não sejam muito amargos ou doces demais. Viver é curar-se sempre e constantemente da mesma doença; rolar pedras ladeira acima, só para vê-las despencarem novamente para o fosso, e depois voltar, respirar, e recomeçar todo o trabalho. Novamente, e de novo, e sempre. 


Recorto memórias do que não houve. É tudo verdade, mas nem tudo aconteceu.

  Lábios vorazes desenharam flores negras no ar, e foram as palavras mais doces que um anjo caído poderia proferir em hora de tamanha calma. Manhã lodosa, lenta, os patos e as garças fazendo algazarra na lagoa, os caranguejos costurando sua baba silenciosa entre as raízes do mangue, e o sol sem convicção a mirar o mundo por trás da montanha, qual menino envergonhado, talvez com medo dos olhares cinzentos da cidade. 

  Eu era todo vírgulas, e reticente já nos começos, mastigava sem pressa o cuscuz das primeiras palavras do dia, ouvindo e imitando os que já estavam acordados, parlapatões. Cantilena, poesia: mil sapos pustulentos a coaxar a dor dos homens, e a lagoa fervilhando de serpentes cegas, que seguiam essas correntes que não levam a lugar algum. Pescadores com rostos enferrujados passaram com seus arpões brilhantes e suas redes de malha grossa. Desejaram-me um bom dia. Promessas resmungadas como quem diz a missa num latim inventado, a ver se um deus qualquer, zangado, poderia fazer mover-se para um lado ou para o outro a montanha de mágoas que puseram em meu caminho.

  Tudo há de se duvidar. Esmola em dia santo. Palavra de ternura no calor do sexo. Favor oferecido por mãos branquinhas e muito limpas. Camisa lavada e perfumada com pétalas de rosa. A luz do sol refletida nas águas pouco remexidas. As nuvens escondendo o granito imemorial das montanhas. As fossas abissais e as valas de verde-musgo salpicadas nas encostas da cordilheira. As cavernas onde morcegos dormitam com um olho aberto e outro fechado. O cheiro das jacas, mangas e goiabas que caíram de maduras na noite anterior. O perfume do luar ainda persistente sobre a pele das ervas orvalhadas de pérolas reluzentes. A voz das sereias, o ronco do mar que mastiga as rochas do litoral, os deuses-anões que moram debaixo dos cogumelos cor-de-abóbora e dentro dos troncos ocos, apodrecidos pelo nosso esquecimento. Os fachos de luz lilás que irradiam dos olhos das carpas no aquário da nossa memória. A inglória virtude de ser você, só você, sobretudo você, para além da casca humana e dos trovões do Olimpo. 

  Fiz do outrora meu descanso, refúgio e bálsamo. Morri para os detalhes do agora, vivendo como bruta caricatura, eficiente nos atos e econômico nos fatos. Fogo-fátuo. Eu. E minh'alma sem norte. E para além do mundo jazem as alminhas que esperam para nascer. Ah, ouvir e não entender! Palavras de ordem. Salves e vivas! Meus gametas gritando augúrios enquanto ânforas de afeto deságuam-me dos olhos. Oh, rubor! Oh, desmesurada pequenez! O amor pediu passagem já passando, pisando girassóis no caminho. E eu sozinho deixando-me levar: amar é vasto como o mar. 

  E de esperar ninguém se cansa. Esperança brava, dolorida. E viver é um cozer de trapos rotos, com linha de ouro e botões de marfim. E todo fim é no tempo certo. Com um recomeço encrustrado na palma da mão, entre signos e linhas mestras, cordames de outros destinos, deixados para trás. Mesura e medida que se tem em conta: horinhas boas pra viver e morrer, o que é sempre a mesma coisa, mudando apenas o sentido de quem vem e vai. 

   Eu esperava. Cansado. Olhos fechados pra enxergar melhor. E pedindo que Deus não me entenda: sou, mas nunca deveria. E de dizer amém ninguém perde o senso. Incenso, velas, pra quê? Há o sol que já perdeu o medo de castigar os pobres, e a lua cheia de mandingas pra confundir os tolos.

  Tudo é planície para quem espera. O peso das horas verga os galhos dos baobás entumecidos, grávidos de perguntas sem resposta. O tempo esperou passar a fúria das marés para que pudessem crescer espinhos sob meus pés descalços e me ensinar dores mais gostosas, e maus-tratos saborosos à carne curtida e salgada nos maremotos e tempestades que todos fazemos em copos d'água. 

  Esperamos. O tempo germinou a hera, a mandrágora, o heléboro negro, a sálvia e o alecrim. Enfeitei meu corpo com cicatrizes vistosas e fui ao baile, dançar a valsa com minhas sombras, inquilinas da minha alma. E tudo resolveu dar certo, por vias tortas. E fez-se de pedra o momento breve em que tudo é deserto e todo caminho leva ao inevitável acidente de um final feliz.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

ENGOLINDO O CHORO



No meio da tarde
Há uma pedra que arde
E não se pode pôr a mão.
Não é magma, carvão, 
Nem prata, nem ouro.
Queima de dentro para fora, 
O coração.
Faz a gente tentar apagá-lo
Em vão, tentando
Engolir o choro.

domingo, 16 de dezembro de 2012

ALEGRIA, ALEGRIA!




Não.
Não há o choro.
Nem ouro escondido.
Nem poema-pranto, nem espanto.
Ninguém terá fome de pão nem da carne do outro.
Ninguém terá sede daquilo que corre em minhas veias.
Os carrancudos, que se desarmem.
Os sedentos de lágrimas, que esperem.
Os ávidos pelo sofrimento performático, que aguardem.
As matronas carpideiras que engulam o momento de sofrer.
Hoje não haverão versos de dor, nem cantares do amor desvalido.
Não virão fantasmas me assombrar. O ectoplasma da morte não virá.
Ninguém hoje pode morrer. Eu decreto! Está decidido!

Que todos sejam imortais, ao menos por um dia.
E que hajam sorrisos, de velhos e crianças.
Que os pobres paguem seus impostos.
Que os ricos doem suas posses.
Que os medianos tenham a medida certa da verdade.
Que os miseráveis se regozijem na própria fossa.
Que os maltrapilhos vistam cartolas.
Que a polícia prenda os bandidos.
Que os bandidos encontrem um tesouro.
Que todo ouro do mundo vire purpurina.
E que os unicórnios habitem as cidades.

Que haja alegria e esperança.
Que seja domingo.
Hoje é domingo.
Mas a missa não virá.
Nenhum salvador está pregado na cruz.
Hoje o poeta é deus. E o evangelho escrito é o meu!
Hoje a poesia canta alegria, alegria!
E que das trevas se faça a luz.



O MENINO OBSERVA O HOMEM





O menino observa o homem.
Menino-tempo, olhar tanto é o que resume
a paisagem que se mostra nova a cada dia.

Todo ser vivente é sua própria semente!
Paisagem de florestas desfolhadas com paciência.
O vivo morre, o morto germina outro tipo de existência.

O menino observa o homem.
E de tanto olhar e amar, 
devagar o consome.

Eis o milagre e mistério absoluto: 
o filho em seu amor é bruto,
precisa ser solvente, e seu pai soluto.

Solve, resolve. 
No ventre da vontade esconde-se um poema.
"Solve et Coagula" é nosso teorema.

Brinca o menino.
Com algodão faz barba longa e branca.
É o tempo imitando o tempo, panela sem tampa.

Cozidos em banho-maria.
Cozidos no fogo baixo de cada dia, somos.
Tempo, patrão. Deus, patrono.

Logo será homem este menino.
Todos os meninos, homens serão.
Um dentro do outro, um "sim" dentro de um "não". 

O menino só quer viver.
O homem só precisa morrer. 
A vida apenas cumpre seu dever.

Quer crescer, ser homem também.
De mãos dadas com seu pai o menino
canta para a morte: vem!

E de outra sorte não sabemos. 
O homem vira menino.
O menino diz amém.

O som do sorriso e a fisgada de dor se parecem.
Angústia e prazer são gemidos quase no mesmo tom.
São todos partes diferentes da mesma prece.

São iguais na foto, note a semelhança
entre a gargalhada senil de um ancião
e o berreiro pueril de uma criança.

Um dia as pernas fraquejam
e o homem, cansado, engatinha.
Note o menino: cedo já levanta e caminha.

Um percebe-se no outro.
Descobrem juntos, perante Deus, de joelhos
que viver é um constante quebrar de espelhos.



terça-feira, 11 de dezembro de 2012

MAGMA





No meio da tarde

há uma pedra que arde

e não se pode pôr a mão.

Não é lápis lazuli, carvão, prata, 

nem os tesouros perdidos outrora.

Queima de dentro para fora: 

coração.


Pedra de fogo, palavra em chama

que machuca fundo enquanto não falo

o verbo tórrido que me toma 

assim de repente, num estouro

que me faz tentar apagá-lo

rabiscando um poema

e engolindo o choro.


[Num silêncio de magma

garimpo versos de ouro.]

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

COM UMA PEDRA NO BOLSO



Mirei à frente
furioso querendo vingança
com uma pedra na mão:
cruel como todas as crianças!
Queria acertar um pássaro qualquer
mas a pedra pulsou, de repente, 
e eu não soube mais o que fazer.

Mirei à frente
com o coração a pulsar entre os dedos.
A ave abatida já formava em minha cabeça um esboço.
E se eu errasse o alvo, ou se acertasse, Deus, que medo!
Guardei a pedra no bolso
como se para sempre guardasse um segredo.

AS CORES DO MEU POEMA





Sonho, sou pintor.
Carrego a mão com azul cobalto
e com amarelo ocre teço minha dor.
Uso cinza grafite, palha, prata, lilás,
e outras luzes que vingam no teto alto
quando de mercúrio os trovões se pintam
e quando a calmaria vira maralto,
onde as borboletas criam tufões
sem que ninguém perceba ou sinta.
Hoje eu trocaria o papel por qualquer tela
onde eu pudesse sangrar colorido, 
e trocar as palavras pelas tintas.

MENINOS, EU VI UM DRAGÃO




Meninos, eu vi um dragão!
Encarei-o bem de perto,
e reparei em seu peito uma ferida aberta.

Meninos, eu vi mesmo um dragão.
Era silencioso, seus músculos tensos ficando flácidos.
Suas lágrimas, contidas, queimavam como ácido.

Meninos, eu vi um dragão.
Não parecia com nenhum daqueles dos contos de fada.
Era um bicho acuado, temia guerreiros de capa e espada.

Meninos, aquele dragão
já não voava nem cospia fogo.
Gostava de flores, de poesia. Era um bobo.

Meninos, eu juro que vi um dragão!
Seus olhos faiscavam um tímido fulgor vermelho.
Meninos, eu achei um espelho.

domingo, 9 de dezembro de 2012

POEMINHA





Cada dia menores
são meus versos.
Espero que tu
não me repreendas.
É que ao ficar nu
(usar palavras poucas,
rasgar todas as roupas)
livro-me de todas as vendas.
Já não faço versos para ser entendido
mas para que eu mesmo me compreenda!

PÃO E VINHO



Siga-me, 
não.
Que os caminhos meus
teu coração de passarinho 
pode nem suportar
de tanto espinho.
 
Siga-me, não.
É que certos dias
sou pão, mas quase
sempre sozinho
sou só vinho.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

SORRISOS E CINZAS




Ivan Orlov era o dono da casa. Vestia a casaca de urso cinzento, meio castanho, sujo mesmo. Adorava a sopa de batata doce temperada com vodka e cogumelos pretos. As botas o faziam andar como um boneco de filme de terror, pernas arcadas e abertas, passos largos, como que sempre estivesse com pressa mas tendo algo a lhe incomodar entre as coxas. Mas o rosto mantinha um semi-sorriso intrigante, era quase a face de um avô bonzinho, ou talvez um Tio Vanya. 

No começo achei que estava muito louco, drogado, numa 'badtrip' regada a contos russos, mas minha carne doía de verdade, e aquele lugar fedia de verdade! A casa era iluminada por velas de sebo, feitas com a gordura dos cavalos que morriam de velhice ou pelos maus tratos do inverno e pelo chicote do mestre. O cheiro era horrìvel. No porão da casa nós mexíamos dois caldeirões enormes, com um fogo que jamais se apagava. 

Alexei era meu amigo, trabalhava comigo na fábrica de velas do porão, era filho bastardo de Ivan com Ekateryna, empregada da casa desde os onze anos, morta aos dezessete. Dizem que um dia, bêbado de vodka feita na casa dos Yakovic com arroz podre e batatas mofadas, Ivan gozando na boca de sua criada, enfiou o membro tão fundo, e apertou-lhe o pescoço com tanta força, que ela primeiro mordeu-o, depois vomitou, e ainda com o pênis enorme em sua garganta e aquela mão gigantesca lhe apertando, ela enfim engoliu seu próprio vômito misturado ao esperma e ao sangue e morreu assim, engasgada, desfalecida, havia urinado e defecado na agonia da morte, estava fétida, a face esverdeada com manchas no rosto, e sangue e porra escorrendo pelo canto da boca. E Ivan, limpando a piroca mole e ensanguentada, grunhiu amaldiçoando a vadia, que lhe tinha mordido com força (espasmo derradeiro) e talvez tivesse inutilizado o membro maldito que a matara.

Ivan não nos olhava nos olhos. Olhava nosso rosto com uma habilidade incrível de jamais olhar os olhos de ninguém. Cossava entre as pernas fazendo uma cara retorcida e depois batia o pé esquerdo com força no chão, mania infalível que se repetia a cada cinco minutos.

Não lembro como fui parar ali, naquele maldito inferno nos confins de Vladivostok. Eu falava Inglês e Espanhol, o que pouco me adiantava naquele lugar. Minha última lembrança fora dali era Kriska, na Croàcia. Estàvamos num bar cheirando cocaína e tomando um vinho que me disseram ser de origem búlgara, doce, forte e enjoativo. Lembro do beco, o mundo girando, eu fodendo-a por trás, ela gemendo baixinho e fumando um cigarro fedorento que se misturava com a fumaça das nossas narinas e dos nossos gemidos. Estava tão frio que cada respiração nos fazia exalar uma bruma densa que demorava a se dissipar. E Kriska fumando e me chamando de negro maldito e me mandando enfiar com mais força, falando um Inglês engraçado e rude que me dava ainda mais tesão. Fodemos na rua, naquele beco, até que na terceira vez que havia gozado parei de sentir minhas pernas, ajoelhei, senti o chão molhado, alguma coisa parecida com uma gaze me tapou a boca e o nariz. Era um cheiro doce e pungente. Afoguei-me.  Lembro de ter acordado brevemente, sem ver luz alguma. Chamei Kriska e recebi um golpe de cano de metal no maxilar. Devo ter perdido alguns dentes, e desmaiei de dor. O que resta de recordação é Ivan com sua barba ruiva, cinzenta nos cantos, me passando uma concha de sopa com um sorriso de papai-noel, e depois um copo de aguardente, aquela vodka intragável, que tomei de um gole só, como se fosse água. Depois, talvez dias depois, fui acordado com um bofetão na cara, e foi a primeira vez que vi Alexei, que estava me pasando um pano sujo pra colocar na boca, estancar o sangue, fazendo gestos tolos, mímicas para se fazer entendido, enquanto Ivan Orlov caminhava pesado pra longe, fazendo ranger as táboas da casa e grunhindo para as velhas nas saletas subjacentes.

Tentei contar a Alexei quem eu era, brasileiro, executivo, poeta, fotógrafo, minha vida boa, meu ano sabático na Europa, as fodas deliciosas na Riviera Francesa, os prédios lindos de Praga, e Kriska, a deliciosa ruivinha croata que me apresentou as drogas e que só gostava que eu lhe comesse por trás e depois gozasse entre os seios duros e lindos, enquanto fumava um maldito cigarro preto, fedorento. Mas Alexei não entendia, e apenas me ensinava por gestos o que deveria fazer ali, recolher os pedaços de ossos, ainda com carnes penduradas, e jogar no caldeirão com um pó amarelo e algumas latas de óleo de peixe, pois há muito tempo já não chegava o carregamento de óleo de baleia, que deixava a mistura menos intragável e mais valiosa no mercado das cidades grandes.

Ivan jogava papéis e gravetos para mantermos o fogo vivo, enquanto um de nós ia ao bosque catar troncos secos. Quem trouxesse poucos troncos era punido com o chicote, mas era pior quando não havia punição, porque era sabido que Ivan gostava de trocar o chicote pelo seu membro desfigurado, torto, com uma cicatriz enorme, e que ficava meio duro e meio mole, e era oferecido como redenção ao mal catador de gravetos. Aprendi o russo de Orlov e de Alexei, e sabia que ele sorria no meio do quarto com quatro camas, quando ainda de pé, as calças abaixadas, dizia com um sorriso de avô bonachão: "Chupa, menino. Chupa direitinho. Eu te perdôo!"

Aprendi a pegar lenha de sobra, guardá-la e indicar a Alexei onde encontrar, pra não sofrer mais as punições do seu pai. Aliàs, nem sei se era mesmo seu pai, pois a história me havia sido contada por Sergy, que morreu de tuberculose no inverno anterior.

Eu vivia ali sem saber o que havia acontecido com o mundo, até que aprendi a ler os rasgos de papel que queimávamos, e perguntava a Alexei o que eram aquelas coisas, e ele dizia que era besteira, política, viagens, mas eu insistia. O trem! Alexei, eu já vi passar aqui o trem! Eu vou-me embora no trem! E ele me olhava com medo, mas com os olhos brilhando. Não estávamos acorrentados, poderíamos fugir à vontade. Mas Alexei me contava sobre os lobos e sobre os lagos congelados, traiçoeiros, cediam ao pouso de uma pomba, jamais aguentariam um homem a correr.

Mas eu queria o trem. Ele passava devagar. Parecia uma lesma bafejando fumaça! Por isso passei meses a observar os horários e dias do trem, e a marcar mentalmente onde eram os limites do riacho e traçando o contorno invisível do lago congelado. Depois de alguns meses eu podia identificar, pelas matizes de branco no chão, omde era terra firme e onde era alçapão, armadilha de água mortalmente gelada.

- Alexei! Vou embora! Terça-feira é dia do trem!
- Niet! Niet! Marcelo, spasiba!
- Se quiser vir, que venha, ou não atrapalhe!

Ele calou, fitando meus olhos no escuro. Era sempre noite, penumbra, naquela casa esquecida por Deus, onde um Cristo de alabastro, cego e surdo, pendurava-se numa porta que jamais se abria. E era estranho ter um objeto religioso em terras comunistas, mas aquilo já não me importava. Maldito ano sabático! Maldita Kriska! Maldito inferno russo!

Na tarde da terça-feira, enquanto Orlov jogava com a pá os ossos pelo buraco que dava na nossa sala de trabalho, que nos servia também de quarto e latrina, eu fugi pelo burado do outro lado. Havia feito luvas de couro de cavalo, pegajosas, mas quentes. E trapos e carnes enfiadas por dentro da roupa. E esfregava chumaços de alecrim sob o nariz, evitando vomitar com o cheiro insidioso do meu próprio corpo. Corri, corri muito, o quando a neve me deixava. E depois de alguns minutos vi Alexei vindo também, e já estávamos no solo liso. Eram as terras sobre o grande lago.

Eu aprendi a correr sobre as partes brancas mais foscas, era gelo forte. Partes brilhantes e parecidas com vidro eram armadilhas letais. 

Ivan Orlov não tardou a perceber a fuga, mas soltou os cães tardiamente, pois confiava que o lago nos engoliria mais cedo que pensávamos. Até as bestas sabiam que não era mais trabalho deles perseguir-nos no gelo fino do lago, e apenas trotavam cheirando o ar denso e frio e seguindo como quem espera encontrar corpos gelados com carrancas de horror sob o ataque da lâmina fria da morte. Jà estàvamos mortos mesmo.

Mas eu corria, e corri mais quando vi os trilhos. Estàvamos à salvo. Sentamos numa pedra e esperamos. Mas Alexei tossia sangue, e eu já não entendia o russo que ele dizia, sibilando entre golfadas de sangue preto, com pedaços marrons que pareciam carne morta. Ele estava doente. Mortalmente, pobre diabo. Dei-lhe carne de cavalo congelada, que ele chupou até virar um sebo parecido com chiclete. E mascamos como fosse um ossobuco servido em Torino.

Avistamos a figura de Ivan ao mesmo tempo que vimos o trem. Eu entendi perfeitamente quando Alexei me disse pra deixá-lo ali. Que Ivan teria misericòrdia. Mas vi que Alexei trazia uma corda entre seus badulaques. Então amarrei-lhe na cintura uma ponta, e a outra levei presa ao meu braço e ombro, como fazem os alpinistas e bombeiros.

O trem chegava, e Ivam também. Começamos a correr. Alexei tinha os olhos esbugalhados e gritava coisas que eu não entendia, mas identificava como preces russas antigas e xingamentos e maldições. Foi quando o trem passou e eu agarrei uma empunhadura da porta, e puxei outra manopla, e firmei o pé direito, depois o esquerdo, e Alexei deixou-se cair. Estava sendo arrastado. Vi quando o pedaço do rosto foi vazado por uma pedra, e um olho escorreu pela cara ensanguentada. 

Eu gritava a ele para ter coragem, mas ele já não falava. Era um boneco, que fui puxando pra mim. Havia esperança. Eu puxava e gitava seu nome. Alexei! Alexei! E nunca falei russo tão bem na vida. Dava-lhe esperanças e pedia que acordasse. Dizia aquele nome com o sotaque da região, que em nada se parece com essa excrecência que rabisco agora em minha língua pátria. Alexei! Ah, Alexei... Foi quando o vi acordar, mexer um braço, puxar o canivete e cortar a corda com suas últimas forças. O corpo ensanguentado foi se afastando, ficando para trás, e Ivan chegando a ele, enorme sobre os escombros do meu único amigo. E ainda pude vê-los através da bruma, Ivan, gigante, carregando Alexei nos braços. O trem afastava-se lentamente, era uma serpente machucada, pesada, carregando o destino do mundo em suas costas.

O trem chegou até a Rússia, onde procurei meu consulado. Recebi roupas, mas minha história não foi acreditada. Deram-me calmantes por dias e dias, e depois de dois meses trancado num quarto sem janela, deitado e amarrado numa cama, tomando sopa de legumes e costela de porco cozida, deram-me alta, e papéis, e me puseram no aeroporto, num voo da Lufthansa, via Frankfurt, Daccar, e enfim Guarulhos e depois Rio de Janeiro. 

Estava com uma barba grossa, a cara magra, os movimentos de um velho mendigo, apesar das roupas novas, do terno bem alinhado que me deram na embaixada. Eu não lembrava onde era minha casa, e dormi no aeroporto por dois dias, até ser expulso por um guarda. Peguei carona num ônibus, andei pelos confins da Ilha do Governador, depois fui cruzando pontes e viadutos, andei às margens da Avenida Brasil, esmolei, andei, esmolei, fazia minhas necessidades na rua, dormia na rua, fui assaltado e surrado por outros mendigos, levaram-me as roupas, deixando-me aos trapos. Andei pelas ruas do centro por três dias, semi-nu, somente as calças e uma camiseta que achara no lixo.

Um dia, sentado entre meninos de rua, esquentando as mãos numa fogueira de lixo, avistei num ônibus uma figura conhecida, um cavalo alado pintado na lateral de alumínio: Pégasus. Lembrei-me de tudo, minha casa, minha infância... Puxei um maço de dinheiro de esmolas que tinha no bolso e subi no ônibus, sem olhar nos olhos do motorista nem perguntar se o que tinha era o suficiente para a passagem. E no caminho fui lembrando de tudo, minha terra, meus amigos, e os onze meses em Vladivostok ficaram em meu subconsciente, enterrados, e apareciam apenas quando a febre e a dor de cabeça eram fortes demais, e porque ninguém entendia russo, tratavam-me como um semi-louco, mas pouco perigoso, apenas um paciente convulsivo a quem bastava acorrentar à cama nos momentos de terror, quando tremores e suores gelados tomavam meu corpo, e eu cantava as antigas músicas dos escravos brancos do truculento Senhor Orlov.

Quanto à Alexei, não sei se sobreviveu. O olho vazado e escorrido, a cara mastigada pelo solo congelado até aparecer os ossos da bochecha, o corpo levado de volta para o bunker de Ivan, e as velas de sebo nos moldes de cobre, as matronas da casa cozinhando repolho, e a crueza daquela língua que só o demônio entendia. Só o demônio e nós, caídos nos confins dos infernos. Pobre Alexei em seu inferno branco e gelado. Que Deus tenha tido pena dele, e deixado-o morrer na neve suja de fuligem e sangue, naquele dia que ficou tatuado em minha memória profunda, aquela memória-magma que borbulha quente quando o subconsciente quer gritar!

Essa história eu nunca tive coragem de contar a ninguém, e com o tempo, eu mesmo já não sei se tudo aquilo aconteceu mesmo ou não. Minha mãe, morta, não me consolou. Meu pai, bruto e ausente, limitou-se a dar-me teto e comida. Aceitou de volta o filho pródigo, sem perguntas. E eu segui em frente, achei emprego, ocupação, mulher, e vida a seguir.

Hoje sou um sobrevivente. Gastei demais, queimei dinheiro como se não houvesse o nascer do sol de outro dia; vendi-me por muito pouco, provei dos mais finos venenos, perfumei-me com os mais torpes pecados, fui vítima e algoz, como cabe a todos nós... Mas lembro ainda que há contas a acertar, e que entre sorrisos e cinzas existe um inferno particular, onde há espaço para os olhares embotados pelo pó dos ossos, do sebo, da vida que se esvai dando pistas de horizontes azuis e vermelhos, mas onde sempre poderá passar um trem, num dia qualquer, para nos salvar.


quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

A FITA VERMELHA



A vida é dura.
E os piores tipos de violência
São os que vem embrulhados
Com o papel dourado do amor
E a fita vermelha da ternura.

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

O TEMPO RESPONDE


Não me peça resposta.
Não espere, não desespere.
A verdade, ainda que oculta, está posta.
A carne não sabe, a alma não vê.
Confira, só o tempo fere e afere.

PAX HOC DOMUI





A luz.
A voz.
A carne.
O cerne.

A cruz.
Os vermes.
O corpo vivo: pequeno. 
O corpo ido: enorme.

O fantasma
Do homem que vive, ainda.
A presença forte de outro,
Cuja existência é finda.

A derme
Que dorme.
O tempo, os ossos. 
Corda frouxa no pescoço.

Morte e vida:
Por um fio.
Atingir a plenitude,
Deixando-se estar vazio.

Debris de magenta e gris.
Destroços de uma doce vida.
Casca de ferida. 
Pó de giz.

Fotografia. 
Veto e voto.
Sorriso: os dentes amarelando.
O moto perpétuo congelado na foto.

Luz é faca de dois gumes.
A carne esconde a alma e seu lume.
Com lâmina boa abra o cerne da rima.
Ela sangra, mas ilumina.

O espírito na cela.
O anjo de asas inúteis e belas.
Pássaro bonito com falta de sorte.
A luz só escapa quando o corpo encontra a morte.

Mas sem pesar. 
A alma lamenta, mas engole o choro.
Diante do insondável é melhor calar.
O silêncio é de ouro!

Depois que deixar de ser poeta,
Serei passarinho, desfraldarei belas asas.
A morte, a sorte, a carne, o cerne, o planeta.
Tudo finda. E eu voarei, o coração em brasa.

A voz cala. Mas me ouvirás.
Vou te contar versos que com nada rimam.
Deus manda consolo de cima para baixo.
O diabo te faz cócegas de baixo para cima.

O sorriso, congelado na foto, se apaga.
O furacão, fotografado, acalma seus ventos.
Luz é matéria que não se vende: quem compra não paga.
Luz, essa que carregamos por dentro, pertence apenas ao tempo.

Frágil mariposa ou vaga-lume
Que em noite de tempestade não voa.
Humanos, a finitude é nosso perfume.
Mas ainda que curta, a curtimos. A vida é boa!

Sofrer é praxe.
E em torturas deliciosas,
Haverá sempre quem ache
Um girassol, uma rosa.

Chore baixinho, pois sei que a dor arrasa.
Já não tenho boca, lábios, para beijos e vinhos.
Já não podes achar meu corpo, trilhar meus caminhos.
Adeus. Que a paz habite a tua casa.

domingo, 18 de novembro de 2012

A TEMPESTADE






Cortando a barra, singrando o horizonte
Vão as táboas de madeira e piche
Que dão formato à trôpega nau.
Tudo no mesmo marasmo de sempre. 
Não há ventos soprando as velas.
A noite demora a passar, estranho azeviche,
Que nubla a orientação pela magia das estrelas.
Pouco se vê além do próprio nariz.
Uns pensam que é o céu, outros, o inferno.
Mas sonhos são fumaça de cachimbo,
Que por um abano podem ser desfeitos.
Aqui é o oceano, não há como criar raiz.
As pernas bambas sofrem a falta da terra firme,
E entre esquerda e direita ninguém vence o pleito.
O mar é um deserto de densas neblinas.
O leviatã, a baleia branca, não quer brincar.
As ondas passam em seu galope eterno
Como cavalos de espumosas crinas.
Arpões inúteis enferrujam em meu peito.
O barco pende de um lado ao outro sem avançar.
Não vemos o timoneiro. 
Marinheiros abandonaram o navio.
As últimas notas no diário de bordo
Mostram as mais estranhas rimas.
A lua é um olho solitário
Que acompanha, mas pouco ilumina.
Temos ferro nas veias.
Há chumbo e mágoa pra se respirar.
Tudo é expectativa de tempestade. 
Tudo resume-se a esperar.
Corpo é escassez. 
Alma, improbabilidade. 
O destino é uma sereia a cantar.
Na vida somos todos lobos do mar.

terça-feira, 13 de novembro de 2012

QUIXOTE / PIXOTE







Não fui o inventor do sussurro,
Nem deixei o verso interminado na boca pênsil.
Tampouco o primeiro a quebrar o silêncio
Com um murro.

Não rasguei-me a carne à unha
Numa linha reta da virilha ao pomo.
Covarde: esta alcunha
Jamais tirou-me o sono.

Meu verso intragável
Só encontra ritmo na dissonância.
Imito o Quixote com seus gigantes imaginados,
E nem sempre tenho a Razão a atuar 
Como um Sancho Pança.

Desci aos infernos, às fossas abissais,
Para encontrar minha alma amiga.
Desci com pressa, nas mãos nada mais
Que as palmas abertas, abraço desenhado, 
Improvável resgate da vida.

Porém na escuridão nada encontrei
E tive os olhos nublados,
E cada passo era um tropeço.
Cansado, não quis mais procurar. 
Nas profundezas me deitei,
Homem feito, fiz-me criança, 
E no esquecimento fiz meu berço.

domingo, 11 de novembro de 2012

MISTÉRIOS




Há uma doçura estranha em não amar, digo, suspeitar que se ama sem saber sob que prisma. Entender o sentimento como uma cisma. Crendice. Achar novas graças na mesmice. Amar sem querer, por acidente astral, conjunção cósmica superior aos simples desígnios do ser humano. O idiota útil, acima do Bem e do Mal. O mar, o amar, o oceano, o mundo, o caminhar no lado escuro da lua, o mergulhar nas fossas abissais, onde tudo o que é supérfluo e cotidiano se torna grave e profundo. O teatro sendo engendrado nos bastidores, na coxia, a poesia acontecendo antes do levantar dos panos. Humano, demasiadamente humano. Palhaço de cenho franzido, punho cerrado, malvado e sério. Amor, mistério. Como a cortina que separa vida e morte. Nunca se sabe onde está ela: somos cegos olhando a paisagem do paraíso pela janela. Achar beleza na crueza do rosto da Medusa, ou ternura nos modos do Minotauro. Com carinho pentear com os dedos os seus cabelos feitos de serpentes, entrar em batalhas jà perdidas gritando aleluias com uma faca entre os dentes. Como nas conversas daquele que dorme e sonha com aquela que nem existe, princesa encantada, triste, enclusurada na mais longínqua montanha. Ser dos desastres do destino o fiel consorte. Não amar, ou ainda não sabê-lo. Eis o mais perfeito selo da sorte!

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

A FLOR DE VIDRO





Nas manhãs em que desabrochas assustada,

e descuidada te banhas na carinhosa luz matutina,
linda flor de vidro, erva perfumosa pelo sol despertada,
no meio dos vales és monumento, tótem, e sobretudo menina,
ingênua em teu solipso berço. Ao encontrar-te assim desamparada
ajoelho-me, peço ajuda e clemência em teu nome ás forças divinas,
para que nessas campinas não sejas por pés de lobos e ovelhas 
despedaçada.

Nas manhãs em que desabrochas reluzente,
oh linda rosa, vítrea estátua que fulgura em mil cores,
vejo-te sofrer calada o teu destino, e timidamente
deixo uma lágrima banhar-te as pétalas, e se fores
a princesa prometida, enclausurada num corpo transparente,
pisada por bestas e feras, as mesmas que te devem mil favores,
morra então, liberta tua alma, flor-princesa, e sonharei com teu perfume
eternamente. 

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

O GOSTO DO TEU SORRISO





Pelo sabor do gesto
um sorriso no teu rosto
traz a felicidade mais honesta.
Ah, como adoro, adoro esse gosto
de luz do sol pintada na tela,
essa luz invencível desafiando as janelas 
e entrando pelas frestas da casa e do corpo.
Sorriso enorme, mas dado de soslaio,
meio de ladinho, mas sem perder o caminho,
sorriso que pelo sabor do gesto já empresta
ao dia uma certa luz diferente, reluz como prata
ou como jóia que brilha perdida na mata.
Pelo sabor do gesto, nem protesto,
caio em teu abismo, absorto, em festa,
e no canto da tua boca encontro um porto
onde posso ancorar minha vida, meu barco,
e deixar descansar meu corpo. 

domingo, 9 de setembro de 2012

INCÊNDIOS


Construí mil flores de papel, 
com o ânimo flamejante 
de quem só pensa em fósforos.


sábado, 8 de setembro de 2012

O SUBTEXTO





Tua vulva.
Tua válvula.
Tuas vontades. 
Teus negócios.
O ócio da carne. 
E seu ofício obscuro.
A aventura, o cerne. 
Umas curvas. 
Uns penhascos.
As razões. O dolo.
Outras cláusulas. 
Leis, protestos. 
Os protocolos.
O teu colo, nú. 
Uns bilhetinhos azuis.
A luz apagada. 
A pele. Os pelos.
Os novelos da alma
À meia-luz.
A escrita bonita
Das mãos sobre a pena,
E da língua entre as pernas.
O proibido, o mais querido.
Os rabiscos do desejo. 
Por cima da pele, 
As mãos e as convenções. 
O dito, bendito contexto.
Sim, é por baixo da pele
Que se traça toda graça.
O mais doloroso
O mais gostoso
De todo o sexo
É o subtexto.