Reparo
que há um veludo
muito bem gasto no gesto comum
e que sobre o mármore negro do cotidiano
há pequenas manchas de contentamento
e mágoa.
Trago
ânforas de cansaço
nas costas, espáduas,
quadris, artelhos, espírito,
e na alma.
O tempo flui, pesado,
mas veloz, com a calma
nervosa dos que morrem aos poucos,
escorrendo por caminhos tortuosos,
por veias, vias rubras onde
se guardam tesouros
ignorados.
A gente sorri, diz
bom dia e boa noite, pede
desculpas, concede a bênção,
dá licença, e sobrevive, por que é preciso
[precioso] sobreviver, resistir, fingir que a carne
entende todo fingimento, necessidade de estar
em paz [no vácuo das bombas] enquanto
tudo o que é sólido, eterno, desfaz-se
graciosamente no ar, diante do vidro
embaçado dos (nossos)
olhos.
Há tempo
para pisar flores,
levantar a guarda, cultivar
amores vãos, cavar trincheiras,
palavrar poemas inúteis, como
todos hão de ser, sempre,
e sempre.
Reparo
que há um veludo
muito bem gasto no gesto comum
e que minhas unhas, desafiadas, arranham
o mármore negro do cotidiano, desenhando
este verso (talvez o derradeiro) que erra
tranquilo, em círculos de virtude
e vício.
Trago ainda
essas ânforas de cansaço
sobre as costas, espáduas,
quadris, nos artelhos,
no espírito,
na alma.
Estou bem.
A máquina do mundo
mói os dias, mastiga as carnes,
e distribui acenos, desses
que não sabemos se
de chegada ou de
adeus.
Há tempo
para pisar flores,
levantar a guarda, cultivar
amores vãos, cavar trincheiras,
palavrar poemas inúteis, como
todos hão de ser, sempre,
e sempre.
Amém.