Ask Google Guru:

terça-feira, 28 de outubro de 2014

RUÍDO







Já não é insônia,
mas um acordar breve que nem é mesmo um acordar,
mas se atreve a ser o despertar de um sonho acordado neste fuso difuso
que é o meu tempo de estar sempre alerta ou desperto ainda que em mim durmam
coisas estranhas, imensas, que penso serem fruto apenas do vinho de ontem,
dos ácidos de outrora, das horas tensas em que passei pensando em sexo,
fazendo sexo, ou perdendo o nexo causal de coisas que, reificadas, reinam
onde a coisa não vige, afligem-se os átomos deste eu-póstero, talvez póstumo,
este eu-agora que me foge do espelho, velho companheiro de andanças petrificadas:
não há caminhos na paisagem guardada na foto.

Já não é insônia,
mas um desfalecer que escorre pelos cantos de cada hora passada em claro
ouvindo música, assistindo um filme, bebendo mais um copo de cólera, desistindo da vida,
tramando mortes secretas ou nem tanto, cantando aquelas cantigas sem letra nem som,
que a gente mastiga rangendo dente com dente, a têmpora latejando em agonia,
macerando sonhos, procurando paz, boiando na foz de uma verdade conquistada
sem esforço, martelando arquétipos, saqueando arcabouços de construções imperfeitas,
o ato-efeito de pensar e repensar o insondável,
para depois não pensar em nada,
o que já é muita coisa.

Já não é insônia,
mas uma viagem, uma busca, interrompida quando o oráculo estaca
numa página aberta, numa foto que talvez seja a de uma flor,
uma vulva, um tótem, um bicho estranho, com a legenda:
'macro de um lírio-tigre-rosa com foco sobre o estame de pólen'.
Paro, olho, tudo faz sentido e eu já nem faço questão de entender nada.
'Macro de um lírio-tigre-rosa com foco sobre o estame de pólen.'
A legenda da foto é o verso que faltava. O poema que não fiz.
E em algum lugar desta vigília, dorme (e sonha)
um poeta fracassado, mas feliz.

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

O GRITO




Há tanto o que não se falar, meu filho.
Tanta coisa não devemos dizer nesta hora
que julgo ter sido sorte, minha e tua, 
não teres nascido ainda. 
Mas espia, espia só!

Nas ruas os operários e os barões gritam
e os soldados, os marechais, os coronéis,
as prostitutas, os poetas, os menestréis gritam.
Todo grito é familiar, meu filho. Neste mundo, 
ou no mundo dos sonhos, quem estiver calado
é que será o estranho.

Os partidos de uns e outros repartem as cidades
e dividem o povo - esta serpente emplumada - 
em fatias finas ou grossas, servidas cruas;
a carne dos homens é assim devorada aos poucos, 
ou consumida em loucas e furiosas garfadas
tudo dependendo da fome de quem os come.

As bandeiras se agitam sobre as cabeças 
destes que são futuros mortos, corpos que hoje
festejam a vitória de uns sobre os outros, irmãos
que são na mesma dor e alegria de não saber nada
e julgar a tudo, a todos, segundo o peso da luz
dos seus olhos embotados, cinzentos.

Nas ruas o clamor das bombas e dos atabaques
imita o rumor das palmas, dos risos, dos estilhaços,
dos rojões, das cornetas, dos tiros para o alto, do asfalto
sendo pisado por botas pretas, lustradas com a baba cáustica
dos que foram vencidos, nós inclusive, filho meu,
porque não sabemos por qual time torcer
e por isso fomos decretados perdedores
antes mesmo do fim da partida.

Há tanto o que não se falar!
Todos já disseram o suficiente, falaram demais,
e continuam discursando sobre a vigência dos signos
que as nações carregam no lombo destes asnos gloriosos...
A vida segue. São seis horas da manhã em algum lugar do mundo
e em algum lugar do mundo um homem tomará o seu café com pão.

N' algum lugar deste mundo um homem beijará a cruz, mas não
a sua mulher, forte como o café, útil como tal. Normal
não beijá-la, a mulher, nem o filho, mas à cruz sim,
pois isto o ensinaram, e aquilo não. Beijar a mão
do padre, do patrão, a bandeira, a camisa, 
a insígnia, beijar o signo, a figura:
pensar no céu, olhar pro chão.

Há tanto o que não se falar!
Aquele homem do povo, que acordou hoje cedo
com a voz rouca de tanto gritar a vitória do seu partido
vai morrer. Todos vamos. Mas antes disso gritamos,
e festejamos, e passamos (passeamos) assim pela vida,
aos berros, aos gritos, enquanto a sorte - ou a morte -
faz seu festim silencioso debaixo da nossa pele.

Filho, tu que estás calado, 
é que estás certo! Há tanto, tanto ainda
o que não se dizer sobre esses tempos,
há tanto o que não se falar nesta hora
que julgo ter sido sorte, minha e tua, 
não teres nascido, não teres vivido,
não teres lido os clássicos, os cânones,
não saberes da política, do futebol, das religiões,
das paixões que movem os homens 
a gritar demais.

Filho meu, bem fazes tu 
por não teres lido em voz alta
os cantos pagãos, os manifestos, 
os protestos, qualquer salmo ou poesia:
meu filho, há muito o que não se falar,
porque o silêncio nos consome
mas apenas o grito vicia.

domingo, 26 de outubro de 2014

A MÁQUINA




Quero correr em volta das maiores fogueiras
e lançar minha carne sobre as faíscas mais delirantes.
Quero fazer meu abrigo à beira dos abismos
e olhar para a escuridão como quem vê estrelas brilhantes.
Quero desejar e desejar e desejar e amar e amar e amar
e me consumir em paixões sem futuro e amores muito vãos.
Quero pular cercas, derrubar muros, reclamar da vida
e decretar que as guerras só existem para que nos reconheçamos irmãos. 
Porque, de qualquer forma, sou e serei sempre cego
a tudo o que é verdadeiramente essencial, eterno, insofismável.
Porque, de qualquer jeito, estarei sempre atado
a este corpo muito humano, demasiadamente humano, finito, falível.
Porque, de qualquer maneira, continuarei sempre acreditando
na redenção do homem, esta máquina ridícula, torta, 
e maravilhosamente desprezível.

terça-feira, 21 de outubro de 2014

BAGAGEM





Se pudesse escapar daqui, 
levaria comigo apenas meus olhos. 
Deixaria o corpo, as juntas que rangem, 
o sangue, a linfa, os intestinos, 
a pele, a língua, as mãos,
tudo isso ficaria para trás. 

Comigo, somente os olhos, 
essas duas bolinhas de âmbar, 
que petrificaram o açúcar dos meus melhores dias, 
transformando em diamente negro as longas tempestades, 
as arredias noites em claro, as figuras de sal da juventude, 
o rosto das mulheres que amei e principalmente destas
que em vigílias absurdas desejei 
com fé e força.

Comigo apenas, 
no relicário dos olhos
essas miragens infalíveis, de seios rijos, 
de coxas magníficas, a boca semi-aberta, 
o arpejo incontido na densa penumbra, 
os suores da nuca, todas essas visões 
de um doce apocalipse particular. 

Sim, os olhos eu levaria comigo, 
guardados numa caixinha de papelão, 
emparedados com pasta de betume. 
Estarão ali, sempre meus, os ambarinos ladrões, 
estes assassinos gentis que, se eu deixasse, 
levariam eles da terra todo o lume. 

Os meus olhos seriam então
como submarinos mergulhados nesta existência 
feita de bruta fantasia, ao cabo da qual, cheios, 
partiriam, e emergiriam para o mundo da verdade, 
despejando por suas pupilas não o petróleo, 
mas algo mais valioso, o pegajoso caldo arco-íris 
que lá se vende a peso de ouro, e que por aquelas bandas 
se chama de poesia.

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

A FLOR




A flor 
que trouxestes para casa 
não é tua.

Não tentes possuí-la 
como quem deseja ser dono da noite
pensando que assim terá a posse
da lua.

Cada flor nada sabe de si
além da verdade insofismável de ser flor
e não pertencer a ninguém.

Esta flor morena, ruiva, negra, amarela
que de tão bela colhestes e levastes para o teu deleite
pertence tanto a ti quanto a água se casa ao azeite.

É bom que o saibas logo:
esta flor que trazes nas mãos
não está aprisionada pelo teu querer.

A flor 
pode morrer a qualquer momento
ou resistir, conforme queira ela mesma.

Toda flor
será sempre linda, e à despeito 
de dinheiro, glória, poder ou força
nenhuma flor jamais será nossa.

Ainda assim, 
qualquer flor que for colhida
ou levada para algum jardim particular
terá de ser regada, muito bem cuidada,
mas nunca possuída.

Toda flor é um pequeno deus:
efêmera, porém infalível.

Talvez ela possa ser tomada,
roubada de jardins alheios 
ou comprada numa feira de domingo
mas nunca, jamais poderá ser capturada
por toda uma vida, em toda sua essência.

Toda flor é um pequeno deus:
a semente do eterno guardada na inconstância.

A terra, os ventos, as chuvas, o sol que a nutre
também a mata: toda flor é um pequeno-deus.

Costumo, perante elas,
tecer preces com a fúria dos apaixonados
e o delicado desespero de quem teme
amar demais e ser consumido.

Ou ser possuído.
Destruído pelo olhar blasée
que toda flor verte sobre nós
humanos, demasiadamente
humanos.

Repito: é imposível 
possuir uma flor.

Porém, de qualquer forma, 
estamos obrigados a cuidar delas, 
pelo tempo que elas assim desejarem.

As flores não são de ninguém
mas olham com carinho, e concedem 
seu perfume apenas àqueles que a elas 
sinceramente se entregarem, sabendo
que todo aquele que contempla uma flor
contempla o seu próprio fim.

domingo, 19 de outubro de 2014

J'ACCUSE!



Se eu fosse estritamente humano
não amaria a ninguém.

Amar é para outro tipo de criatura,
quase-alada, quase caída, nascida

já sabendo que fora da poesia
não há amor, nem dor, nem pecado, nem redenção.

RESUMO



Adão, coitado, 
acordou sobressaltado naquela manhã:
tinha sonhado que tanto na porta do céu
quanto na do inferno, havia uma (a mesma)
maçã.

LEVE




Aprendi a ser mais leve, 
mas não menos denso. 
Ando tenso com as pessoas, 

mas creio em asas que nascem das coisas mais simples, 
onde a mão não alcança: essas coisinhas brilhantes que balançam 
no céu, mesmo quando não podemos vê-las, 

mesmo que não as demos nome 
ou as chamemos de estrelas, 
essas que são as alminhas da gente (suas, minhas) 

que sorriem contentes 
não com o que somos ou deixamos de ser, 
mas com o que sonhamos poder. 

A vida vai me levando,
o tempo vem me trazendo.
Sou aquilo, mas queria ser isto.

Vivo, perene por enquanto.
Resisto, logo penso. 
Penso, desisto, insisto, 

e só existo porque estou aprendendo 
a ser mais leve, muito mais leve,
mas não menos denso.

NATUREZA MORTA




1.

Olho aquelas maçãs 
nas mãos pequenas de uma linda moça.

Noto a hesitação proposital
que faz perfeito o que ainda nem aconteceu

mas já existe, no calor do momento
delineado pelas mãos frias do pintor.


2.

Ouço o irromper da primeira mordida
que em cacos parte o perfume da fruta.

Por mil anos aquela maçã de louça
resistirá, intacta, ainda que mordida.

Intacta, pois a menina já seria mulher
e a mulher sempre houvera sido uma ninfa

e todas as ninfas deste quase-extinto planeta
terão sido apenas sombras criadas na penumbra

dos versos de carne e sonho
riscados pelas mãos rudes dos poetas.


3.

Quando o sol se apagar
e todas as histórias forem ecos petrificados

haverá ainda aquela maçã
na manhã seguinte ao fim dos tempos

na memória angustiada de um deus
que procurará em vão as mãos brancas,

os olhos grandes, a boca rosada, o semi-sorriso
daquela criatura quase alada, quase caída,

pintada na natureza morta
deste poema.

PAISAGEM INCOMPLETA






A cauda prateada assoma
na franja de uma tarde quente
sobre as ondas preguiçosas da lagoa suja
pela baba espessa dos caramujos e dos homens:
há um delicada esperança coberta de musgos tristes
no momento que se desenrola coado por meus olhos
que fixam uma sereia na inconstância da imagem fugidia 
peneirada por minutos que vêm e vão sob a doçura tropical
de um poema incompleto, afogado nessas águas intranquilas
que pretejaram sem pena a luz dourada do sol.

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

O ACENDEDOR DE CANDEEIROS






- Para Mário Peixoto, por 'Limite', 
e para Sérgio Machado, por 'Onde A Terra Acaba'.



Silêncio.


Há esses dias, feitos de prata suja, 

em que eu gostaria de desinaugurar o sol,
desfazê-lo em brasas definitivamente dormidas,
espezinhar seu carvão crú e lamber eu mesmo,
antropofágico e apaixonado, o borrão
que sobrasse dessa extinção.

Mas - e sempre brota um 'mas'

dentro de qualquer ameno desespero -
creio que alguém sempre reinventa o sol,
como o acendedor de candeeiros
que há séculos percorre todas as ruas do mundo
com a sua chama primaveril,
levantando-a por sobre os ombros das cidades
para acender nos postes os losangos
onde velas de sebo e querosene aguardam
para enrubescer a lua e acalentar os gatos
melando o chão com sua luz difusa.

Confuso, porque o acendedor de candeeiros

só aparece à noite, mas para mim era ele quem trazia
o dia - seguinte - que só começaria depois que minha insônia
dissesse a primeira prece e me deixasse mastigar
duas horinhas de sono, ao menos.

Ah, o acendedor de candeeiros prossegue,

ignorando (por uma sábia cegueira, talvez)
que não há mais candeeiros nas cidades
e que a luz elétrica substituiu o romance
e a nuance perfumada e crepitante foi abafada
por outros poemas, menos delicados, mais velozes,
talvez mais belos, decerto mais vorazes
porém jamais tão perfeitos.

E se alguém agorinha mesmo tentasse

desinventar o sol, removendo a luz não dos olhares
mas dos nossos fatídicamente incendiados quereres
deixando o dia à meia-luz das nossas verdades particulares,
essas diversas verdades muito humanas, feitas de cristal,
ainda assim haveria um 'mas' no relicário da nossa memória,
e algum louco ou sonhador,
com aspirações poéticas ou messiânicas,
trataria de desenhar um outro sol
despontando no cimo das campinas,
e outro louco escreveria rimas de maior alento
sobre onde começa e termina o dia,
confundindo (como sempre se faz em poesia)
o que é ouro, o que é prata, o que é sol, o que é lua.
["Onde a Terra acaba, e as coisas do espírito se iniciam."]

E qualquer poeta, cego, seguiria em paz,

com passos firmes, acendendo candeeiros
que já não existem mais.



JAZZ



Junte as partes duras da partitura, 
rebole no embôlo mole de miasmas de um frutuoso aboio, 
esses arroios de águas sujas, o verso que surge na tempestade 
de uma cantiga antiga de ninar serpentes. 

A gente entende toda alma que se vende por migalhas, 
por batalhas, por mortalhas do que queria ser semente. 
Atente para isso: esqueça as figuras obscuras, procure 
o fio que segura o brilho pontiagudo dessa estrela 
que fura o negro cetim da nossa noite. 


Mire, veja: 
o açoite das notas mais graves 
no conclave das vozes recém-caladas. 

É tudo silêncio.
E som.

A rima indócil quer fugir: deixe. 
O tempo certo desata feixes de outros versos
desacatando o solfejo dos teus sofismas. 

Tudo é diverso.
Avesso.

Melismas ou merismas? 

No batismo pagão dos tons dissonantes, 
as consoantes confirmam a (geo)grafia das vogais 
que abençoam o cismo de todas as crismas. 

Deus me livre de um bom poema!

Há ritos demais.
E os ratos dizem amém.
E quem nos salvará o direito
de pausar a canção?

Te pergunto, 
o poema bom, 
mas raso, 
te abisma?

Estou confuso, mas recuso corrigir 
os erros que acertam (aos berros) meu silêncio dissimulado. 

Alguém poderá desenrolar essa embolada? 
Toquem um blues nagô, um jazz tupi, por favor.

O MORCEGO







Durante o voo
os olhos cegos do morcego
enxergam sem ver
a luz, não das coisas
que já são, mas daquelas
que ainda podem ser.

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

O PRIMEIRO CAFÉ



Hoje fiz da minha insônia algo produtivo, desatei a varrer os cantos do castelo, espantando aquelas aranhinhas que se escondem por trás do pensamento da gente. 

O gato dorme com minha mulher, orgulhoso ladrão de namoradas. Creio que até meus amores platônicos caíram no seu charme. Estou só.

Desci pra brincar com o cachorro, que me mostrou um gambá passeando no muro e uma coruja faiscando olhos de vidro verde num muro branco onde a chuva de mil outonos marcou de limo as bordas incertas, como acontece com o tempo sobre o nosso corpo. 

Comecei a catar folhas secas. Troquei de lugar a minha beterraba, porque onde ela estava o cão devorava as folhas tenras assim que nasciam, deixando o bulbo grená enterrado, resmungando calado. Em duas semanas teremos salada de folhinhas de beterraba, colhidas do Jardim da Frida.

Frida, a bananeira, aceitou bem que eu a podasse. Extingui aquela floresta de bananas deixando uma meia-lua de troncos altos, de um verde tingido de palhas terrosas e douradas. As cadeiras brancas, de ferro pesado, coloquei ali, como se alguém estivesse prestes a tomar o café da manhã como se faz na Toscana. Mas ninguém virá, não temos prosecco nem prosciutto. Mas é bom saber que, ao menos, as cadeiras estão ali, branquinhas, à sombra das nossas árvores, as daqui e as do vizinho, porque a sombra não tem dono, nem respeita fronteiras.

As flores do campo, nos vasos de vidro, estão murchando. E continuam lindas. Há algo de belo nessa decadência inevitável. Belo e terrível, uma mensagem, uma sentença para todos nós.

Refiz meus curativos. Ainda assim, sangrei. Suporto as dores, lavo os cortes olhando com curiosidade as nuances por baixo da pele. Sou multicor! Há camadas vermelhas, rosadas, brancas, cor-de-vela, cor-de-músculo, cor de gente por baixo da casca da gente. E pulsa, o bicho colorido que mora debaixo dos hábitos, dos desejos, das verdades e mentiras, pulsa por baixo do que a gente pensa que é a gente.

Fiz um portão. Ao longo da semana arregimentei as madeiras no sótão, desci com elas, medi, fiz cálculos, desfiz cálculos, preguei e despreguei, passei dias montando e desmontando, até que nessa madrugada o sol presenciou o milagre: enquanto a alvorada irrompia sobre a Pedra da Gávea, as madeiras foram se juntando sozinhas, eu ali com o martelo na mão, minha batuta de regente. Às sete da matina o portão estava erguido, e pintado de azul à moda da Provença, pra não ficar diferente de tudo à sua volta, essa névoa de casa de praia e campo onde tudo é precário e bonito - tudo o que nos falta está em seu devido lugar.

Aprendi a tomar café preto essa semana, aos trinta e seis anos de idade. Faço o café para o meu amor todas as manhãs, coloco as xícaras, monto a mesinha que vai para a cama, e fico olhando... Mas, dia desses, coloquei um pau de canela e dois cravos no café, sem contá-la. Provei. Adoramos. Sei que trapaceei, mas era café, e pronto. Foi o primeiro café da minha vida, marcando que nesta semana dobrei aquela curva da meia-idade em que não se tem mais colo de pai e mãe, o passado se estica num fio maior que o futuro, e uma xícara de café é o único remédio para o mal da vida.

Na crônica do dia vou deixar um espaço para vaias e aplausos. Eu ainda não existo. Vou tomar um banho quente, vestir uma roupa limpa, usar perfume, tomar água, ler as notícias, procurar um jeito de sobreviver mais um dia, talvez ganhar na loteria, capinar alguns quintais, aceitar aquele convite do vizinho ladrão de bancos, receber aquela carta de uma herança perdida, atravancada nos salões da justiça, atender aquele telefonema, trabalho novo, projetos, o trivial da roda da vida. Deixo essa parte por editar, pois ainda é cedo. 

Ainda é muito cedo neste dia feio de primavera. Lembrando que mesmo nos dias feios de primavera, as flores nunca o são. E se no meio do trivial destas memórias eu fechar meus olhos sem aviso, sem volta, vou lembrar (talvez lá onde já ninguém de nada se lembre) do primeiro café que tomei como adulto, gente grande, assustindo o jornal matinal, a moça do tempo sorrindo ao anunciar as tempestades, marcando que nesta semana dobrei aquela curva da meia-idade em que não se tem mais colo de pai e mãe, quando o passado se estica num fio maior que o futuro, e uma xícara de café é o único remédio para o mal da vida.

domingo, 12 de outubro de 2014

O EMPAREDADO



Desenho no ar uma parede.

Depois, um martelo. Talvez uma picareta.

Ataco minha parede imaginária com as precárias ferramentas.

Surge um buraco, que trato de chamar de janela.

Linda a janela, de frente para o mundo, veja só.

Do outro lado dela existe o mundo, o real.

Moças, montanhas, o mar... Ah, o mar!

E o tempo, que passa sem ameaçar.

O mundo todo ali, veja só!


Mas não o alcanço, o mundo. 

Ele é real, e minha parede, de mentirinha.

Fico triste, num impasse. O real me assalta.

Está ali, mas não posso tocá-lo.

Criei uma parede, maldita.

Em minha sanha de criador, fiz também uma picareta.

Mas já não sei como usá-la. Tinha feito um buraco pequeno.

Apenas o suficiente para colar o rosto e ver a realidade.


O olho esquerdo sentindo a brisa do real, a cor do real.

Os peitinhos muito verdadeiros das debutantes que vão à praia.

Os passarinhos que piam cantos melhores que meus versos.

O universo dos trombadinhas e das celebridades.

As cidades pulsando, os carros passando.


Aquele olho colado na parede imaginária vendo tudo.

No ar, minha parede é firme, imensa, concreta.

Já não posso derrubá-la. A parede é insofismável.

Estou preso, encarcerado. Estou emparedado.

Já não me serve esta vontade transfigurada numa picareta.

Sou escritor. Tenho a poesia e o sentimento do mundo.

E na mão, apenas uma caneta.

O OBOÉ




É cedo, muito cedo.
Nesta ilha silente em que moro
alguém, um ser que ignoro, toca o oboé.
Talvez não seja o instrumento, poderá ser um filme,
e eu ouvi exatamente o momento em que a orquestra
deixava a moça triste solar a peça que lhe cabe.

Talvez já nem seja tão cedo. 
E nem haja, nesta ilha já nem tão silente
alguém, um ser que ignoro, tocando o oboé.
Mas tenho pra mim esta regra de ouro:
se assim eu imagino, então assim é.

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

O CERCO



[Des]esperando, paciente, 

como lâmina rente ao fofo da face 

que se risse rasgaria muito mais 

o que o riso impreciso, incauto, 

rasgasse.


[Des]esperando, paciente,

como debutante que olhasse descrente

com o punho cerrado, faca na mão tremente,

o bucho malemolente, revolvendo, rebolante

como se ali tivesse gente, filho de um pingo quente

que lhe sorrindo entrasse, saliente, coxa adentro

maldito filho d'um vento morno lá de atrás das moitas

que num passe de mágica com sua graça aflita

lhe desgraçasse.


[Des]esperando como o que mira no olho da gazela

e sabe que no boqueirão, onde não há testemunha

o dedo no gatilho ou o rastilho do chifre em riste, 

para aqueles olhos (os dois bichos) exalando breu

não vale o creio-em-deus-pai, tampouco vai

resolver a mandinga negra, índia ou mourisca.


[Des]esperando a hora última

a medula inteira esticada num arco de promessa

maldizendo essa hora de bater a alma em revista.

É nessa nesga de espaço e tempo que se crispa 

a verdade de duas bestas idênticas sob o céu:

em pêlo pleno, sem corda nem sela,

em perigo ou em fome, 

é ela ou eu.

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

GÊNESIS







Percebo o corpo das coisas
e debaixo da sua casca os portos
onde se ancoram os seus signos.

As paixões, tumores benignos.
Os humores segregados pela bile.
As esponjas de lipídios e libido.
A rubra musculatura involuntária
e a lisa carne, o aço esticado, 
precário.

Eu mesmo sou corpo: o veludo da voz
e o concreto armado pelo seu significado,
o cetim dourado das palavras mais redondas
e o arame farpado dos versinhos bobos, simples.

Independente do que deseja o poema
Eu sou carne. E no cerne disso há tantas palavras
que é melhor calar, comê-las ou deixar que se fartem.

Vou-me percebendo enquanto corpo, 
notando o quanto há de carne e sangue
nos espaços ainda não preenchidos
pelo espírito do verbo.

As palavras não são minhas
tampouco este corpo.
Mas tudo o que percebo
é meu: céu, inferno, verão, inverno,
tudo o que minha voz vestir de palavra
será meu.

A moça do tempo anunciando dias ensolarados.
A moça triste, que no ônibus senta ao meu lado.
A moça linda que perfumada vem deitar-se comigo.

A moça quase loira, quase ruiva, quase morena, 
quase-poema, mulher de um quase-bom amigo.

A moça invisível, cuja mão doce resvala em minha testa
secando meus suores quando meu corpo quer batalha
e minha alma pede abrigo.

Tudo o que pretendo nomear
será sempre meu.

Tropeço no mar
e ele me grita seu nome, seu cantar,
seu ruflar de tambores oceânicos, seu gozar
de mil virgens afogadas, este hurrar de pescadores
que saíram pra o mar, o mar, o mar, o ar, ar, ar, ar, 
o cantar de quem se afoga, o respiro de quem roga
por mais ar, ar, a procurar os cabelos das sereias
por onde se segurar, no mar, o ar, no mar, este mar
que vai e vem em ondas e ondas e ondas, e uma semi-pausa
com mais ondas e ondas a contar, a cantar, a dizer, 
a falar, que seu nome é só e tão somente 
o mar, o mar, o mar...

Tomo posse, não para o uso diário,
Mas para o solitário hábito de contar moedas,
contar conchinhas coloridas, contar meus medos.

O corpo das coisas
pertence a quem os nomeia.

Assim mesmo, quem diz que me ama
reclama para si o sangue de minhas veias
e bebe comigo deste cálice
e aceita o quinhão de dor
e amor, que virá.

O nome das coisas é sua alma.
O corpo delas é a palma
da mão de Deus, que não existe
mas cujo gesto potente faz nascer o sol
e tremer os ossos dos nossos campeões.

Tudo o que não tem nome 
está morto.

Assim o evangelista desvendou o segredo
em seus testamentos escritos em pedra
e medo.

No início era o verbo
(note que ainda sem rima)
e da primeira palavra se fez a carne
e do tutano das vontades fez-se o nosso
desejo por consumir pele, pêlo, carne e ossos
aos que nos prostramos hoje com orgulho e mágoa
pois nosso choro verteu os mais belos oceanos 
e o espírito de deus, quase naufragando, 
seguiu sorrindo, boiando
sobre as águas.

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

QUIMERA



As flores já nascem murchas
quando não acreditamos na primavera.
Ainda assim, elas nascem, e ainda assim são flores
porque no peito de todo homem triste e descrente
queima secretamente uma florida quimera.

domingo, 5 de outubro de 2014

RELÓGIO







Todo homem precisa de um relógio. 

De pulso, 
principalmente.

Pois os de correntinha 
para o bolso da casaca 
já não se encontram mais, 
estão fora de moda: 

o tempo engolindo as casacas 
mastigou junto os relógios, 
nem a correntinha sobrou... 

Mas voltemos ao pulso, 
que a hora vige (urge) 
cortando os pulsos, digo,
fatiando as horas como se quer

e é preciso contar as coisas, 
antes que elas - as coisas -
 se esfarelem no tempo. 

Eu dizia que todo homem precisa 
de um relógio, de pulso. 

Não pelo relógio, nem pelo tempo perdido 
em tentar contar as horas, intermináveis.

Não, o relógio de pulso 
não servirá para absolutamente nada 
além de estar ali, no pulso, sentindo ele mesmo - o relógio - 
que ele não é nada, mas sob ele pulsa um milagre, um homem, 

cuja consciência do tempo inventou palavras 
como finito e infinito, perene e fugaz. 

Sim, embaixo da caixa do relógio, 
utensílio que em vão marca as horas, 
há pele e pêlo, e vontade, e coragem, e medo,
tudo muito bem organizado nesta máquina delicada, 
finita, bonita, cuja consciência do eterno 
é o princípio e fim de todos os tempos, 

e enfim a suprema justificativa 
para que o homem use o relógio, 
e não o contrário.

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

GOMORRA



Corra pra gomorra!

Cena 03. Tomada 04.


Travelling. 

Fade out to white.

Fade in from black.

What the fuck?


Plano iraniano. Plano japonês.

Plano sueco. Americano, não.

Plano pornô-gospel. 


O diretor 

não se decide.


Música.

Acordes interrompidos 

em 00:13s.


Close up da boca. Dos olhos. 

Das mãos. O toque nervoso.

Um seio borrado. Gemidos em off.

Uma nuca, os pêlos finos, negros,

muito nítidos, em primeiro plano.


Mulheres de olhinhos puxados.

Homens de olhinhos fechados.


Os anjos garotos

começando a ficar excitados.


E os deuses marotos, 

olhando para o outro lado.


Corta!