Há tanto o que não se falar, meu filho.
Tanta coisa não devemos dizer nesta hora
que julgo ter sido sorte, minha e tua,
não teres nascido ainda.
Mas espia, espia só!
Nas ruas os operários e os barões gritam
e os soldados, os marechais, os coronéis,
as prostitutas, os poetas, os menestréis gritam.
Todo grito é familiar, meu filho. Neste mundo,
ou no mundo dos sonhos, quem estiver calado
é que será o estranho.
Os partidos de uns e outros repartem as cidades
e dividem o povo - esta serpente emplumada -
em fatias finas ou grossas, servidas cruas;
a carne dos homens é assim devorada aos poucos,
ou consumida em loucas e furiosas garfadas
tudo dependendo da fome de quem os come.
As bandeiras se agitam sobre as cabeças
destes que são futuros mortos, corpos que hoje
festejam a vitória de uns sobre os outros, irmãos
que são na mesma dor e alegria de não saber nada
e julgar a tudo, a todos, segundo o peso da luz
dos seus olhos embotados, cinzentos.
Nas ruas o clamor das bombas e dos atabaques
imita o rumor das palmas, dos risos, dos estilhaços,
dos rojões, das cornetas, dos tiros para o alto, do asfalto
sendo pisado por botas pretas, lustradas com a baba cáustica
dos que foram vencidos, nós inclusive, filho meu,
porque não sabemos por qual time torcer
e por isso fomos decretados perdedores
antes mesmo do fim da partida.
Há tanto o que não se falar!
Todos já disseram o suficiente, falaram demais,
e continuam discursando sobre a vigência dos signos
que as nações carregam no lombo destes asnos gloriosos...
A vida segue. São seis horas da manhã em algum lugar do mundo
e em algum lugar do mundo um homem tomará o seu café com pão.
N' algum lugar deste mundo um homem beijará a cruz, mas não
a sua mulher, forte como o café, útil como tal. Normal
não beijá-la, a mulher, nem o filho, mas à cruz sim,
pois isto o ensinaram, e aquilo não. Beijar a mão
do padre, do patrão, a bandeira, a camisa,
a insígnia, beijar o signo, a figura:
pensar no céu, olhar pro chão.
Há tanto o que não se falar!
Aquele homem do povo, que acordou hoje cedo
com a voz rouca de tanto gritar a vitória do seu partido
vai morrer. Todos vamos. Mas antes disso gritamos,
e festejamos, e passamos (passeamos) assim pela vida,
aos berros, aos gritos, enquanto a sorte - ou a morte -
faz seu festim silencioso debaixo da nossa pele.
Filho, tu que estás calado,
é que estás certo! Há tanto, tanto ainda
o que não se dizer sobre esses tempos,
há tanto o que não se falar nesta hora
que julgo ter sido sorte, minha e tua,
não teres nascido, não teres vivido,
não teres lido os clássicos, os cânones,
não saberes da política, do futebol, das religiões,
das paixões que movem os homens
a gritar demais.
Filho meu, bem fazes tu
por não teres lido em voz alta
os cantos pagãos, os manifestos,
os protestos, qualquer salmo ou poesia:
meu filho, há muito o que não se falar,
porque o silêncio nos consome
mas apenas o grito vicia.
Nenhum comentário:
Postar um comentário