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sexta-feira, 17 de outubro de 2014

O ACENDEDOR DE CANDEEIROS






- Para Mário Peixoto, por 'Limite', 
e para Sérgio Machado, por 'Onde A Terra Acaba'.



Silêncio.


Há esses dias, feitos de prata suja, 

em que eu gostaria de desinaugurar o sol,
desfazê-lo em brasas definitivamente dormidas,
espezinhar seu carvão crú e lamber eu mesmo,
antropofágico e apaixonado, o borrão
que sobrasse dessa extinção.

Mas - e sempre brota um 'mas'

dentro de qualquer ameno desespero -
creio que alguém sempre reinventa o sol,
como o acendedor de candeeiros
que há séculos percorre todas as ruas do mundo
com a sua chama primaveril,
levantando-a por sobre os ombros das cidades
para acender nos postes os losangos
onde velas de sebo e querosene aguardam
para enrubescer a lua e acalentar os gatos
melando o chão com sua luz difusa.

Confuso, porque o acendedor de candeeiros

só aparece à noite, mas para mim era ele quem trazia
o dia - seguinte - que só começaria depois que minha insônia
dissesse a primeira prece e me deixasse mastigar
duas horinhas de sono, ao menos.

Ah, o acendedor de candeeiros prossegue,

ignorando (por uma sábia cegueira, talvez)
que não há mais candeeiros nas cidades
e que a luz elétrica substituiu o romance
e a nuance perfumada e crepitante foi abafada
por outros poemas, menos delicados, mais velozes,
talvez mais belos, decerto mais vorazes
porém jamais tão perfeitos.

E se alguém agorinha mesmo tentasse

desinventar o sol, removendo a luz não dos olhares
mas dos nossos fatídicamente incendiados quereres
deixando o dia à meia-luz das nossas verdades particulares,
essas diversas verdades muito humanas, feitas de cristal,
ainda assim haveria um 'mas' no relicário da nossa memória,
e algum louco ou sonhador,
com aspirações poéticas ou messiânicas,
trataria de desenhar um outro sol
despontando no cimo das campinas,
e outro louco escreveria rimas de maior alento
sobre onde começa e termina o dia,
confundindo (como sempre se faz em poesia)
o que é ouro, o que é prata, o que é sol, o que é lua.
["Onde a Terra acaba, e as coisas do espírito se iniciam."]

E qualquer poeta, cego, seguiria em paz,

com passos firmes, acendendo candeeiros
que já não existem mais.



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