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segunda-feira, 13 de outubro de 2014

O PRIMEIRO CAFÉ



Hoje fiz da minha insônia algo produtivo, desatei a varrer os cantos do castelo, espantando aquelas aranhinhas que se escondem por trás do pensamento da gente. 

O gato dorme com minha mulher, orgulhoso ladrão de namoradas. Creio que até meus amores platônicos caíram no seu charme. Estou só.

Desci pra brincar com o cachorro, que me mostrou um gambá passeando no muro e uma coruja faiscando olhos de vidro verde num muro branco onde a chuva de mil outonos marcou de limo as bordas incertas, como acontece com o tempo sobre o nosso corpo. 

Comecei a catar folhas secas. Troquei de lugar a minha beterraba, porque onde ela estava o cão devorava as folhas tenras assim que nasciam, deixando o bulbo grená enterrado, resmungando calado. Em duas semanas teremos salada de folhinhas de beterraba, colhidas do Jardim da Frida.

Frida, a bananeira, aceitou bem que eu a podasse. Extingui aquela floresta de bananas deixando uma meia-lua de troncos altos, de um verde tingido de palhas terrosas e douradas. As cadeiras brancas, de ferro pesado, coloquei ali, como se alguém estivesse prestes a tomar o café da manhã como se faz na Toscana. Mas ninguém virá, não temos prosecco nem prosciutto. Mas é bom saber que, ao menos, as cadeiras estão ali, branquinhas, à sombra das nossas árvores, as daqui e as do vizinho, porque a sombra não tem dono, nem respeita fronteiras.

As flores do campo, nos vasos de vidro, estão murchando. E continuam lindas. Há algo de belo nessa decadência inevitável. Belo e terrível, uma mensagem, uma sentença para todos nós.

Refiz meus curativos. Ainda assim, sangrei. Suporto as dores, lavo os cortes olhando com curiosidade as nuances por baixo da pele. Sou multicor! Há camadas vermelhas, rosadas, brancas, cor-de-vela, cor-de-músculo, cor de gente por baixo da casca da gente. E pulsa, o bicho colorido que mora debaixo dos hábitos, dos desejos, das verdades e mentiras, pulsa por baixo do que a gente pensa que é a gente.

Fiz um portão. Ao longo da semana arregimentei as madeiras no sótão, desci com elas, medi, fiz cálculos, desfiz cálculos, preguei e despreguei, passei dias montando e desmontando, até que nessa madrugada o sol presenciou o milagre: enquanto a alvorada irrompia sobre a Pedra da Gávea, as madeiras foram se juntando sozinhas, eu ali com o martelo na mão, minha batuta de regente. Às sete da matina o portão estava erguido, e pintado de azul à moda da Provença, pra não ficar diferente de tudo à sua volta, essa névoa de casa de praia e campo onde tudo é precário e bonito - tudo o que nos falta está em seu devido lugar.

Aprendi a tomar café preto essa semana, aos trinta e seis anos de idade. Faço o café para o meu amor todas as manhãs, coloco as xícaras, monto a mesinha que vai para a cama, e fico olhando... Mas, dia desses, coloquei um pau de canela e dois cravos no café, sem contá-la. Provei. Adoramos. Sei que trapaceei, mas era café, e pronto. Foi o primeiro café da minha vida, marcando que nesta semana dobrei aquela curva da meia-idade em que não se tem mais colo de pai e mãe, o passado se estica num fio maior que o futuro, e uma xícara de café é o único remédio para o mal da vida.

Na crônica do dia vou deixar um espaço para vaias e aplausos. Eu ainda não existo. Vou tomar um banho quente, vestir uma roupa limpa, usar perfume, tomar água, ler as notícias, procurar um jeito de sobreviver mais um dia, talvez ganhar na loteria, capinar alguns quintais, aceitar aquele convite do vizinho ladrão de bancos, receber aquela carta de uma herança perdida, atravancada nos salões da justiça, atender aquele telefonema, trabalho novo, projetos, o trivial da roda da vida. Deixo essa parte por editar, pois ainda é cedo. 

Ainda é muito cedo neste dia feio de primavera. Lembrando que mesmo nos dias feios de primavera, as flores nunca o são. E se no meio do trivial destas memórias eu fechar meus olhos sem aviso, sem volta, vou lembrar (talvez lá onde já ninguém de nada se lembre) do primeiro café que tomei como adulto, gente grande, assustindo o jornal matinal, a moça do tempo sorrindo ao anunciar as tempestades, marcando que nesta semana dobrei aquela curva da meia-idade em que não se tem mais colo de pai e mãe, quando o passado se estica num fio maior que o futuro, e uma xícara de café é o único remédio para o mal da vida.

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