Percebo o corpo das coisas
e debaixo da sua casca os portos
onde se ancoram os seus signos.
As paixões, tumores benignos.
Os humores segregados pela bile.
As esponjas de lipídios e libido.
A rubra musculatura involuntária
e a lisa carne, o aço esticado,
precário.
Eu mesmo sou corpo: o veludo da voz
e o concreto armado pelo seu significado,
o cetim dourado das palavras mais redondas
e o arame farpado dos versinhos bobos, simples.
Independente do que deseja o poema
Eu sou carne. E no cerne disso há tantas palavras
que é melhor calar, comê-las ou deixar que se fartem.
Vou-me percebendo enquanto corpo,
notando o quanto há de carne e sangue
nos espaços ainda não preenchidos
pelo espírito do verbo.
As palavras não são minhas
tampouco este corpo.
Mas tudo o que percebo
é meu: céu, inferno, verão, inverno,
tudo o que minha voz vestir de palavra
será meu.
A moça do tempo anunciando dias ensolarados.
A moça triste, que no ônibus senta ao meu lado.
A moça linda que perfumada vem deitar-se comigo.
A moça quase loira, quase ruiva, quase morena,
quase-poema, mulher de um quase-bom amigo.
A moça invisível, cuja mão doce resvala em minha testa
secando meus suores quando meu corpo quer batalha
e minha alma pede abrigo.
Tudo o que pretendo nomear
será sempre meu.
Tropeço no mar
e ele me grita seu nome, seu cantar,
seu ruflar de tambores oceânicos, seu gozar
de mil virgens afogadas, este hurrar de pescadores
que saíram pra o mar, o mar, o mar, o ar, ar, ar, ar,
o cantar de quem se afoga, o respiro de quem roga
por mais ar, ar, a procurar os cabelos das sereias
por onde se segurar, no mar, o ar, no mar, este mar
que vai e vem em ondas e ondas e ondas, e uma semi-pausa
com mais ondas e ondas a contar, a cantar, a dizer,
a falar, que seu nome é só e tão somente
o mar, o mar, o mar...
Tomo posse, não para o uso diário,
Mas para o solitário hábito de contar moedas,
contar conchinhas coloridas, contar meus medos.
O corpo das coisas
pertence a quem os nomeia.
Assim mesmo, quem diz que me ama
reclama para si o sangue de minhas veias
e bebe comigo deste cálice
e aceita o quinhão de dor
e amor, que virá.
O nome das coisas é sua alma.
O corpo delas é a palma
da mão de Deus, que não existe
mas cujo gesto potente faz nascer o sol
e tremer os ossos dos nossos campeões.
Tudo o que não tem nome
está morto.
Assim o evangelista desvendou o segredo
em seus testamentos escritos em pedra
e medo.
No início era o verbo
(note que ainda sem rima)
e da primeira palavra se fez a carne
e do tutano das vontades fez-se o nosso
desejo por consumir pele, pêlo, carne e ossos
aos que nos prostramos hoje com orgulho e mágoa
pois nosso choro verteu os mais belos oceanos
e o espírito de deus, quase naufragando,
seguiu sorrindo, boiando
sobre as águas.
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